Em uma revelação que expõe as complexas dinâmicas entre desenvolvedoras e redes de varejo, o diretor de Assassin's Creed 3, Alex Hutchinson, detalhou como a Ubisoft implementou mudanças significativas no jogo seguindo pressões externas – particularmente da gigante norte-americana GameStop. A motivação, segundo ele, não veio de feedbacks de jogadores ou da visão criativa da equipe, mas sim de uma demanda comercial específica para aumentar artificialmente a duração total da experiência.

O peso das prateleiras e a métrica do "valor percebido"

Hutchinson explicou que a decisão partiu diretamente dos escalões superiores da Ubisoft após reuniões com executivos da GameStop. O argumento central era o "valor percebido" pelo consumidor. Varejistas físicos, na época, consideravam a duração de um jogo um fator crucial para justificar seu preço de venda e posicionamento nas lojas. Jogos mais longos, na visão deles, transmitiam maior valor, influenciando diretamente na decisão de compra do cliente que segurava a caixa na mão.

E aí é que a coisa fica interessante. A equipe de desenvolvimento foi instruída a encontrar maneiras de esticar o gameplay, não necessariamente adicionando conteúdo narrativo significativo ou missões secundárias elaboradas, mas sim incorporando elementos que aumentassem metricamente o tempo necessário para concluir o título. Essa abordagem colidia frontalmente com a visão original da equipe, que priorizava um ritmo mais dinâmico e uma progressão mais orgânica.

O impacto no design e na experiência do jogador

Essa interferência teve consequências diretas e palpáveis no produto final. Mecânicas de progressão foram ajustadas, algumas atividades podem ter sido deliberadamente tornadas mais demoradas, e a curva de dificuldade em certas seções pode ter sido recalibrada não para um desafio mais satisfatório, mas simplesmente para consumir mais minutos do relógio.

É um daqueles casos clássicos onde os números cruzes do negócio se chocam com a arte do design de games. Você já parou para pensar quantas horas da sua vida foram gastas em tarefas repetitivas em um jogo não porque elas eram divertidas ou interessantes, mas porque alguém em uma sala de reunião decidiu que o jogo precisava ter X horas de duração? Pois é.

Um reflexo de uma era pré-digital dominante

Este episódio serve como um retrato perfeito de uma era específica da indústria, ainda muito dependente das vendas físicas em grandes redes. O poder de prateleira de uma GameStop era imenso, e manter um bom relacionamento com esses varejistas era, muitas vezes, mais importante do que agradar a um nicho de jogadores hardcore em fóruns online.

Com a ascensão avassaladora das vendas digitais e de marketplaces como Steam, PlayStation Store e Xbox Live, esse poder foi drasticamente diluído. Hoje, as métricas de sucesso e as pressões de design são muito diferentes, focadas em engajamento contínuo, battle passes e conteúdo pós-lançamento, mas ainda assim a sombra do "valor percebido" e do tempo de jogo como métrica persiste, só que de outras formas.

O caso de Assassin's Creed 3 não é isolado. Muitos estúdios, especialmente em projetos de grande orçamento, enfrentam pressões semelhantes de publicadoras ansiosas para atender a múltiplos stakeholders – desde acionistas até parceiros de varejo. A verdade é que jogos triple-A raramente são feitos apenas para jogadores; são produtos complexos que precisam navegar um emaranhado de expectativas comerciais.

Mas como exatamente essa pressão se materializou no código do jogo? Hutchinson deu alguns exemplos concretos, embora sem entrar em detalhes extremamente específicos que quebrassem NDAs. Uma tática comum foi ajustar a economia de progressão. Talvez os recursos necessários para aprimorar certas habilidades tenham sido aumentados, obrigando o jogador a se dedicar mais à coleta. Ou então, a taxa de spawn de itens raros pode ter sido reduzida, alongando artificialmente o grind.

Missões de acompanhamento de personagens, notoriamente mais lentas, podem ter sido inseridas ou estendidas onde originalmente seriam mais curtas. Até mesmo a navegação no vasto mapa de fronteira pode ter sido deliberadamente tornada mais lenta ou obstruída com mais obstáculos, forçando o jogador a gastar mais tempo simplesmente se deslocando de um ponto A a um ponto B. São ajustes sutis, mas que somados, impactam profundamente a métrica final.

A reação da equipe de desenvolvimento

Imagine a frustração de uma equipe que passou meses, talvez anos, afinando o ritmo de sua criação, apenas para receber uma ordem de desfazer parte desse trabalho para atender a uma planilha. Hutchinson descreveu um ambiente de certa resignação. Havia um entendimento de que essas eram as realidades do negócio, especialmente para uma franquia de porte e investimento como Assassin's Creed. A criatividade, em muitos momentos, precisa fazer concessões para a viabilidade comercial.

Não se tratava de pura teimosia artística. Os desenvolvedores argumentavam, com certa razão, que um jogo mais enxuto e bem ritmado frequentemente proporciona uma experiência mais memorável e satisfatória do que um título inflado com horas de conteúdo filler. Um pacing ruim pode manchar a percepção de um jogo excelente, fazendo com que os jogadores se cansem antes de verem seu final – o oposto completo do objetivo desejado pela GameStop.

E aí mora o grande paradoxo: ao buscar aumentar artificialmente o "valor percebido", a publisher e a varejista corriam o risco real de diminuir o "valor real" da experiência. Quantos jogadores, na época, abandonaram AC3 na sequência de missões maçantes de caça ou coleta, frustrados com o ritmo, sem nunca saber o porquê daquela sensação de desânimo?

O legado duradouro dessa mentalidade

Embora o poder das redes de varejo físico tenha diminuído, a obsessão com o tempo de jogo como principal métrica de valor não desapareceu completamente. Ela apenas se transmutou. Na era digital, vemos isso em sistemas de engajamento projetados para reter jogadores diariamente, em grinds intermináveis para desbloquear itens em battle passes, e na pressão por conteúdo "endgame" que mantém uma comunidade ativa por meses.

O modelo de negócios mudou, mas a mentalidade por trás do "mais é sempre melhor" persiste em muitos cantos da indústria. A diferença é que, hoje, o argumento não é mais sobre impressionar um comprador que segura uma caixa, mas sobre manter estatísticas de engajamento altas para acionistas e garantir que um jogo-as-a-service continue lucrativo.

O relato de Hutchinson nos faz questionar: quantas decisões de design em jogos que amamos ou odiamos foram tomadas não por razões criativas, mas por demandas de mercado quase invisíveis para o jogador final? É um lembrete poderoso de que jogos, especialmente os blockbusters, são antes de tudo produtos, e suas formas são moldadas por forças que vão muito além da tela.

Com informações do: IGN Brasil