Hideaki Itsuno, o lendário diretor por trás de franquias icônicas como Devil May Cry e Dragon's Dogma, recentemente fez uma admissão surpreendente: mesmo após décadas de sucesso na indústria, seu projeto dos sonhos pode nunca se tornar realidade. Em uma entrevista reveladora, o veterano da Capcom compartilhou insights profundos sobre os desafios de equilibrar visão artística com realidades comerciais no mundo dos games.

Uma nova liberdade criativa na Tencent

Itsuno deixou a Capcom após mais de duas décadas para se juntar à LightSpeed Studios da Tencent, e parece estar encontrando um ambiente notavelmente aberto às suas ideias. "Estou feliz em meu novo estúdio", compartilhou ele com a Famitsu. O que me impressiona é como a liderança da Tencent abraçou sua proposta sem grandes revisões - algo raro em uma indústia conhecida por interferência corporativa.

Ele foi o responsável por sugerir seu novo projeto, e a empresa está dando aos desenvolvedores uma liberdade criativa significativa. Mas aqui está o paradoxo interessante: mesmo com essa liberdade recém-descoberta, Itsuno reconhece que precisa se conter. Por quê? Porque suas ideias mais passionais simplesmente não seriam economicamente viáveis.

Hideaki Itsuno, diretor de Devil May Cry e Dragon's Dogma

O dilema criativo: arte versus comércio

"Falando estritamente, não. Eu acredito que os tipos de games que eu mais gostaria de fazer provavelmente não venderiam", explicou Itsuno com uma honestidade rara. "Eles seriam muito radicais para serem julgados como comercialmente viáveis. Estou bastante ciente disso."

Essa admissão me faz pensar: quantos projetos visionários nunca vemos porque não se encaixam em modelos previsíveis de sucesso comercial? Itsuno adotou uma abordagem pragmática: "Em vez disso, extraio elementos específicos dessas ideias de games e os combino com elementos que sei que vão funcionar, baseados em minha experiência. É assim que estou construindo um novo título."

O que é fascinante é que ele não para de sugerir essas ideias radicais. "Sempre que me pedem para propor novos projetos, eu geralmente apresento cinco ou seis ideias e misturo nelas duas que realmente quero fazer, mas elas nunca são escolhidas." Essa persistência em manter suas visões mais ousadas na mesa, mesmo sabendo que provavelmente serão rejeitadas, fala muito sobre seu compromisso com a inovação.

Cena de jogo da série Devil May Cry

Olhando para o futuro enquanto honra o passado

Apesar de estar em uma nova empresa, Itsuno mantém laços afetivos com sua antiga casa. Ele revelou ao VGC que ainda gostaria de criar um futuro Capcom vs. SNK 3, retornando assim ao gênero de jogos de luta onde iniciou sua carreira. Há algo poeticamente circular nisso - um desejo de voltar às origens após anos explorando outros gêneros.

Seu novo projeto na Tencent conta com uma equipe de talentos familiares: o designer de narrativas Toshihiro Nakagawa, o artista Daigo Ikeno e o ilustrador ‘Gouda Cheese’, todos antigos colaboradores da Capcom. Essa continuidade de parcerias criativas sugere que, mesmo em novo terreno, Itsuno valoriza as conexões que forjou ao longo de sua carreira.

A situação de Itsuno levanta questões interessantes sobre a indústria de games como um todo. Se até um diretor com seu histórico de sucessos comerciais enfrenta limitações criativas, o que isso significa para desenvolvedores menos estabelecidos? E como o equilíbrio entre expressão artística e viabilidade financeira continuará evoluindo à medida que a indústria amadurece?

O paradoxo da criatividade na indústria moderna

O que Itsuno descreve não é exatamente novo, mas ganha contornos especiais quando vem de alguém com sua trajetória. Afinal, estamos falando do diretor que reinventou Devil May Cry com o aclamado DMC 5 e criou Dragon's Dogma, uma franquia que cultiva fãs fervorosos até hoje. Se nem ele consegue emplacar suas ideias mais passionais, o que esperar do resto da indústria?

Em minha experiência acompanhando o mercado de games, percebo que esse dilema se intensificou dramaticamente nos últimos anos. Os orçamentos para jogos AAA atingiram patamares estratosféricos - estamos falando de centenas de milhões de dólares para produções de ponta. Naturalmente, esse cenário torna os publishers extremamente avessos ao risco. A pergunta que fica é: será que a indústria está perdendo sua capacidade de inovar justamente quando mais precisa?

Itsuno parece ter encontrado uma solução intermediária interessante. "Extrair elementos específicos" das ideias radicais e combiná-los com mecanismos comprovadamente bem-sucedidos soa como uma estratégia sensata. É quase como um processo de destilação criativa - pegar a essência da visão original e adaptá-la para um formato comercialmente viável. Mas até que ponto essa abordagem preserva a alma do projeto inicial?

Casos paralelos: quando a paixão venceu o pragmatismo

Curiosamente, a história dos games está repleta de exemplos que desafiam o pragmatismo de Itsuno. Hideo Kojima conseguiu convencer a Konami a bancar Metal Gear Solid décadas atrás, um projeto considerado arriscadíssimo na época. Mais recentemente, Hidetaka Miyazaki perseverou com Demon's Souls mesmo com a FromSoftware hesitante - e criou todo um subgênero de RPGs no processo.

Mas esses são exceções que confirmam a regra? Ou será que Itsuno está sendo excessivamente cauteloso? Conversando com desenvolvedores independentes, ouço frequentemente que a "era de ouro" da criatividade desenfreada migrou para o espaço indie, onde orçamentos menores permitem experimentações mais ousadas. No entanto, mesmo aí os desafios são enormes - a saturação do mercado digital torna cada vez mais difícil destacar-se.

O que me surpreende é que Itsuno continua apresentando essas ideias "impraticáveis" mesmo sabendo que serão rejeitadas. Há algo quase quixotesco nessa persistência. É como se ele mantivesse viva a chama da criatividade pura, mesmo enquanto navega pelas águas turvas dos compromissos comerciais. Essa dualidade define bem a condição do criador moderno: sonhar o impossível enquanto constrói o possível.

O fator Tencent: uma nova abordagem para velhos problemas

A mudança para a Tencent representa mais do que uma simples troca de empregador. A gigante chinesa tem recursos praticamente ilimitados e uma estratégia global ambiciosa. Se alguma empresa poderia bancar os sonhos mais loucos de Itsuno, seria ela. No entanto, até mesmo nesse ambiente aparentemente ideal, as realidades econômicas persistem.

O que isso nos diz sobre o estado atual da indústria? Talvez que não exista mais "escapatório" - nenhum publisher, por mais rico que seja, está disposto a queimar centenas de milhões em experimentos. A globalização do mercado de games criou oportunidades incríveis, mas também padronizou expectativas e métricas de sucesso. Um jogo precisa agradar a públicos diversificados em múltiplos continentes, o que naturalmente incentiva um certo conservadorismo criativo.

E ainda assim... há espaço para otimismo. A própria existência de figuras como Itsuno em posições de influência sugere que a batalha entre arte e comércio está longe de terminar. Sua estratégia de "infiltrar" elementos visionários em projetos comercialmente viáveis pode não ser ideal, mas representa um caminho possível para evolução gradual. Às vezes, as revoluções acontecem em pequenos incrementos rather than saltos dramáticos.

O caso de Itsuno também levanta questões fascinantes sobre o envelhecimento na indústria de games. Aos 52 anos, ele pertence a uma geração que viu o medium amadurecer desde seus primórdios. Será que desenvolvedores veteranos carregam sonhos diferentes dos mais jovens? E como a experiência acumulada afeta a maneira como eles avaliam riscos criativos? São perguntas que merecem reflexão mais profunda.

O que mais me intriga nessa história toda é a honestidade brutal de Itsuno. Muitos diretores cultivam mitos sobre sua genialidade incontestada - ele escolheu falar abertamente sobre compromissos e limitações. Essa transparência é rara e valiosa. Nos ajuda a entender que os games que amamos são frequentemente o resultado de complexas negociações entre visão e realidade, entre o que se deseja criar e o que é possível criar.

Enquanto Itsuno continua seu trabalho na Tencent, fico imaginando quais elementos de seus sonhos impossíveis eventualmente encontrarão caminho até seus jogos. Talvez certas mecânicas, narrativas ou estéticas que ele considera "radicais demais" possam, com o tempo, tornar-se aceitáveis - ou mesmo desejáveis. A história dos games está cheia de ideias que pareciam loucas até se tornarem mainstream.

Com informações do: Adrenaline