Night City, o cenário de Cyberpunk 2077, é retratada como um caldeirão de violência, corrupção e caos tecnológico. A narrativa principal nos coloca na pele de V, um mercenário lutando por sobrevivência e glória em meio a tiroteios, perseguições e conspirações corporativas. Mas e se você simplesmente... ignorasse tudo isso? E se, em vez de buscar a grandeza ou a vingança, você apenas tentasse viver uma vida comum? Foi essa pergunta, aparentemente simples, que levou o YouTuber Any Austin a embarcar em um experimento peculiar: passar 15 horas no jogo vivendo não como um "edgerunner", mas como um garçom.
O Metodologia do Pacifista: Ignorando a Trama Principal
O experimento de Any Austin tinha regras claras. Ele criou um novo personagem e, após a sequência inicial obrigatória, decidiu ignorar completamente a missão principal e qualquer atividade que envolvesse violência direta. Em vez de aceitar trabalhos de "fixer" ou se envolver em conflitos de gangues, seu objetivo era encontrar um emprego comum e tentar simular uma rotina. Após vasculhar a cidade, ele se estabeleceu como garçom em um restaurante asiático no distrito de Japantown. A partir daí, sua jogada consistia em cumprir um turno simulado, interagir com NPCs de forma pacífica, explorar a cidade a pé ou de transporte público, e simplesmente... existir. Sem armas, sem hacks de combate, sem corridas ilegais. A pergunta era: o jogo, construído em torno de conflito e ação, permitiria ou suportaria esse estilo de vida?
Night City por Outro Ângulo: Beleza, Tédio e Limitações
Os resultados, compartilhados em seu vídeo, foram uma mistura fascinante de descobertas e frustrações. Por um lado, Austin descobriu uma beleza ambiental impressionante que muitas vezes passa despercebida na correria das missões. Ele pôde apreciar os detalhes da arquitetura, os letreiros de néon refletindo na chuva, e a movimentação dos cidadãos comuns (os chamados "background NPCs") com uma calma incomum. A trilha sonora ambiental e os sons da cidade ganharam um novo protagonismo. No entanto, a experiência também expôs as limitações do jogo como um "simulador de vida".
As interações com NPCs fora de missões específicas são extremamente limitadas e repetitivas. Não há um sistema de emprego ou economia simulado que permita progredir em uma carreira civil. Após algumas horas, a rotina de "trabalhar" no restaurante (que era, na verdade, apenas ficar parado no local) e passear sem objetivo começou a se tornar monótona. O mundo é lindo, mas é um palco; a maior parte dos mecanismos são projetados para espectadores que também são atores em um drama de ação, não para moradores.
O Que Isso Revela Sobre o Design de Mundos Abertos?
Esse experimento vai além de uma curiosidade sobre Cyberpunk 2077. Ele toca em uma discussão central no design de jogos de mundo aberto: a diferença entre largura e profundidade. Night City é incrivelmente larga e vertical, repleta de cantos para explorar. Mas sua profundidade sistêmica—aquelas regras internas que permitem que o mundo reaja de formas orgânicas e variadas às ações do jogador—é canalizada quase que exclusivamente para o combate, o stealth e a progressão da narrativa principal e das side quests.
Jogos como Red Dead Redemption 2 ou certos modos de The Sims investem mais nessa profundidade sistêmica para atividades mundanas, com ciclos de necessidade, empregos simulados e interações sociais mais complexas. Em Cyberpunk, a vida pacífica é, em grande parte, uma experiência contemplativa. Você pode observar a vida, mas não pode realmente participar dela de uma forma que o sistema do jogo reconheça e recompense com mecânicas interessantes. É como morar em um museu incrivelmente detalhado: você pode admirar a exposição, mas não pode interagir com a maioria dos itens.
E, claro, a própria natureza de Night City como uma distopia capitalista extrema parece ironizar a tentativa de uma vida tranquila. A cidade literalmente consome os pacíficos. A narrativa do jogo, os anúncios, a estética—tudo grita que a calma é um luxo que ninguém pode pagar. O experimento de Austin, de certa forma, se torna uma luta contra a própria mensagem do jogo.
Mas será que essa "luta contra a mensagem" é um defeito ou uma característica interessante? Pense bem: a frustração de tentar viver pacificamente em Night City e encontrar um vazio sistêmico pode ser, ela mesma, uma forma poderosa de comentário social. O jogo te diz, através de sua mecânica, que naquela sociedade não há espaço para a simplicidade. A única agência que você tem é a violenta ou a clandestina. É uma mensagem bastante pesada entregue não através de diálogo, mas através da ausência de opções. Isso é preguiça de design ou crítica embutida? A linha pode ser tênue.
Aliás, o experimento levantou uma questão prática que muitos jogadores casuais já devem ter sentido. Quantas vezes você já andou por uma rua de Night City, viu um NPC sentado em um banco comendo algo, e pensou "queria poder fazer isso também"? Existe uma vontade, mesmo que passageira, de apenas habitar o espaço, de não ser sempre o agente do caos. Games como Stardew Valley ou Animal Crossing capitalizam nesse desejo por rotina e crescimento pacífico. Em um RPG cyberpunk, essa fagulha de desejo por normalidade cria um contraste narrativo interessante, mesmo que o jogo não a alimente.
O Papel da Comunidade e dos Mods em Preencher as Lacunas
É aqui que a comunidade de jogadores entra em cena, como costuma acontecer. O experimento do Any Austin não é um caso isolado. Fóruns e vídeos estão cheios de jogadores que criam seus próprios "challenges" de vida pacífica, estabelecendo regras caseiras para extrair um tipo diferente de experiência do mundo. Eles criam histórias de cabeça, ignoram marcadores de missão e focam na fotografia, no roleplay silencioso ou na simples exploração arquitetônica.
Mais significativamente, os modders têm trabalhado para dar algum suporte sistêmico a esse estilo de jogo. Já existem mods que tentam adicionar pequenas camadas de "vida simulada". Alguns introduzem necessidades básicas, como fome e sono, forçando o jogador a fazer pausas em apartamentos ou comer em barracas de comida. Outros tentam criar mini-jogos de emprego ou interações sociais expandidas com NPCs específicos. Nenhum mod transforma Cyberpunk 2077 em um simulador de vida, é claro—a base do jogo é muito sólida em sua direção original. Mas esses esforços mostram que o desejo por uma experiência mais mundana e orgânica dentro daquele mundo deslumbrante é real e persistente.
E isso me faz pensar: será que a CD Projekt Red poderia, em uma expansão futura ou sequência, incorporar alguns desses elementos de forma oficial? Nem que fosse uma pequena área, um subdistrito, onde as mecânicas de combate dessem lugar a mecânicas de socialização, comércio ou trabalho corriqueiro. Seria um risco enorme, afastando-se do core do público, ou uma ousadia que poderia redefinir o gênero?
A Tensão Entre Narrativa e Sandbox: O Que o Jogador Realmente Quer?
No fundo, o experimento de 15 horas como garçom escancara a tensão eterna nos games de mundo aberto: até que ponto o mundo existe para servir a uma história específica, e até que ponto ele deve ser uma caixa de areia para o jogador criar suas próprias histórias? Cyberpunk 2077 claramente se inclina para o primeiro polo. Sua força está em contar uma história poderosa e cinematográfica em um ambiente imersivo. A liberdade que ele oferece é, em grande parte, liberdade de abordagem dentro dos parâmetros dessa história—como você lida com um inimigo, qual rota toma em uma missão.
Jogos como The Elder Scrolls V: Skyrim, por outro lado, constroem seus mundos mais como plataformas para a emergência de histórias pessoais. Você pode ignorar a trama principal por centenas de horas e ainda sentir que está progredindo, seja como fazendeiro, comerciante, caçador de relíquias ou decorador de casas. O sistema de habilidades e a economia mais rudimentar permitem essa ilusão. Night City não tem essa "cola" sistêmica para atividades não-violentas. Sua economia é estática, suas facções reagem quase apenas a hostilidade, e seus NPCs são, em sua esmagadora maioria, hologramas com ciclos de caminhada pré-determinados.
Então, o que aprendemos? Aprendemos que a beleza de Night City é, em muitos aspectos, cenográfica. É uma obra-prima de arte ambiental, mas sua interatividade é direcionada. Tentar viver uma vida normal lá é como visitar um parque temático incrivelmente detalhado e tentar conseguir um emprego de verdade em uma das atrações. Você pode até ficar parado fingindo, mas o mecanismo não foi feito para isso. A genialidade—ou a tragédia—do experimento está justamente em revelar os limites da imersão. Ele nos mostra onde termina o mundo vivo e onde começa o palco.
E talvez essa seja a maior lição para os designers do futuro. Mundos abertos não precisam ser simuladores de tudo para todos. Mas se você vai gastar recursos monumentais criando uma cidade que respira, talvez valha a pena dar a ela um ou dois sistemas que permitam respirar de formas diferentes. Um pequeno jogo de cartas nos bares, uma mecânica de conversa mais elaborada em certos locais, um sistema de reputação civil além da reputação de mercenário. Pequenas coisas que não quebram o fluxo de ação, mas que dão textura à calma. Porque, no fim das contas, até em um cyberpunk distópico, até os edgerunners precisam de um dia de folga.
Com informações do: IGN Brasil










