Em um momento crucial para o setor automotivo global, a histórica parceria entre Renault e Nissan passa por mais um capítulo de transformação. Com mudanças recentes na liderança de ambas as empresas e cenários financeiros bastante distintos, a aliança que já foi uma das mais poderosas do mundo automotivo busca novos caminhos para revitalizar sua colaboração estratégica.
Uma Parceria com Altos e Baixos
A relação entre Renault e Nissan remonta a 1999, quando a montadora francesa adquiriu uma participação significativa na japonesa, chegando a deter 43% das ações em determinado momento. Essa aliança, que posteriormente incluiu a Mitsubishi, tornou-se uma das maiores forças do setor automotivo mundial em volume de vendas durante o período de liderança do brasileiro Carlos Ghosn.
No entanto, a queda de Ghosn após acusações de fraude financeira expôs tensões latentes na parceria. Atualmente, a Renault mantém cerca de 36% das ações da Nissan com 15% dos direitos de voto, enquanto a Nissan detém 15% da Renault. Essa estrutura de participação cruzada sempre foi um ponto sensível nas relações entre as empresas.

Mudanças na Liderança e Novos Rumos
Os recentes movimentos nas lideranças de ambas as empresas criaram uma janela de oportunidade para reavaliar a parceria. Na Nissan, Makato Uchida foi substituído por Ivan Espinosa após o fracasso das negociações de fusão com a Honda. Enquanto isso, na Renault, Luca de Meo deixou a empresa para assumir posição no grupo de luxo Kering, sendo substituído por François Provost.
Curiosamente, essas mudanças ocorrem em contextos financeiros bastante diferentes para as duas montadoras. A Renault recentemente anunciou um acordo com a Geely que inclui uma joint-venture no Brasil, demonstrando uma estratégia expansionista. Já a Nissan continua buscando formas de superar sua crise financeira.

Oportunidades e Desafios na Nova Fase
Segundo informações do Financial Times citando fontes internas da Renault, o ex-CEO Luca de Meo teria considerado vender a participação na Nissan para fortalecer financeiramente a fabricante europeia. No entanto, a queda no preço das ações complicou essa estratégia, reduzindo o valor da participação da Renault para aproximadamente 9,5 bilhões de euros.
O atual cenário parece favorecer uma reaproximação. Um porta-voz da Renault confirmou que há conversas em andamento entre os líderes das duas empresas para discutir como as marcas podem se apoiar mutuamente no presente e no futuro. A Renault também trocou seus representantes no conselho da Nissan e está apoiando o plano de reestruturação da marca japonesa.
Na prática, as colaborações atuais entre as empresas têm sido bastante pontuais. Um exemplo é o March elétrico, que é produzido em uma fábrica da Renault, além do compartilhamento de plataformas para alguns modelos específicos. A Nissan recentemente reafirmou que considera a "Aliança um pilar fundamental do nosso negócio", sinalizando abertura para uma cooperação mais estreita.
O que me surpreende é como essa relação, que já foi tão produtiva, agora parece depender mais de necessidades financeiras imediatas do que de uma visão estratégica compartilhada. A transição para veículos elétricos e as transformações tecnológicas no setor automotivo criam tanto desafios quanto oportunidades para essa parceria redescoberta.
E essa dependência financeira mútua pode ser justamente o catalisador que a aliança precisa. A Renault, apesar de seus acordos com a Geely, ainda enfrenta pressões significativas para financiar sua própria transição elétrica. A Nissan, por sua vez, precisa desesperadamente de eficiência de custos e acesso a tecnologias que a Renault já desenvolveu. É um daqueles casos em que a necessidade pode realmente gerar inovação na colaboração.
O Papel Fundamental da Transição Elétrica
Quando você olha para o portfólio de ambas as marcas, fica claro onde as sinergias poderiam realmente fazer diferença. A Renault já tem uma plataforma modular para veículos elétricos - a CMF-EV - que está sendo usada em modelos como o Megane E-Tech e que poderia ser adaptada para futuros veículos da Nissan. Por outro lado, a Nissan tem experiência valiosa em baterias e sistemas de propulsão elétrica acumulada desde o lançamento do Leaf, o primeiro carro elétrico massificado do mundo.
O que me intriga é por que essa colaboração tecnológica não foi mais intensa nos últimos anos. Talvez as tensões culturais e a rivalidade interna tenham criado barreiras que apenas uma mudança geracional na liderança poderia remover. Agora, com novos CEOs em ambas as empresas, há uma oportunidade real de repensar essas dinâmicas.
Mercados Regionais como Campo de Teste
O Brasil pode se tornar um laboratório interessante para essa reaproximação. A recente joint-venture entre Renault e Geely no país cria um cenário peculiar onde a Nissan poderia se beneficiar da infraestrutura de produção e distribuição. Imagino que os executivos estejam analisando cuidadosamente como expandir a presença da Nissan no mercado brasileiro sem investimentos massivos em nova infraestrutura.
Na Europa, a situação é igualmente promissora. A Renault tem fábricas subutilizadas que poderiam produzir modelos da Nissan para o mercado europeu, enquanto a Nissan tem forte presença na Ásia e América do Norte - mercados onde a Renault sempre enfrentou desafios. É quase como se estivessem sentados em uma mina de ouro de complementaridade geográfica, mas sem a pá certa para escavar.
Um exemplo concreto dessa potencial sinergia está no segmento de picapes médias. A Nissan Frontier é um produto consolidado globalmente, enquanto a Renault não tem uma oferta competitiva nesse segmento. Por outro lado, a Renault tem expertise em veículos comerciais leves que poderiam ser adaptados para a Nissan. São nessas lacunas complementares que a aliança poderia realmente brilhar.
Os Desafios Culturais que Persistem
Mesmo com novas lideranças, os desafios culturais entre uma empresa francesa e uma japonesa não devem ser subestimados. Trabalhei com empresas de ambos os países e posso dizer que as diferenças vão desde processos de tomada de decisão até expectativas sobre velocidade de execução. A Nissan tende a valorizar consenso e deliberação cuidadosa, enquanto a Renault historicamente adotou uma abordagem mais top-down e ágil.
E não podemos esquecer o trauma pós-Ghosn. O escândalo deixou cicatrizes profundas em ambos os lados, criando desconfiança que vai além das simples questões financeiras ou estratégicas. Reconectar essas culturas exigirá mais do que discursos corporativos - exigirá projetos concretos que demonstrem benefícios tangíveis para ambas as partes.
O que observo é que o setor automotivo está se movendo em direção a consolidações e parcerias estratégicas. A Stellantis surgiu da fusão de PSA e FCA, a Volkswagen Group continua expandindo seu império, e as chinesas estão avançando agressivamente. Nesse contexto, Renault e Nissan precisam decidir rapidamente se querem navegar essas águas turbulentas como parceiros genuínos ou como aliados relutantes.
As próximas decisões sobre compartilhamento de plataformas para veículos elétricos, desenvolvimento conjunto de software e estratégia de baterias serão cruciais. Se os novos CEOs conseguirem alinhar essas áreas, a aliança pode recuperar parte de seu antigo brilho. Se não, correm o risco de se tornar mais um caso de estudo sobre oportunidades perdidas na indústria automotiva.
Com informações do: Quatro Rodas










