É quase uma heresia no mundo dos games admitir isso, mas aqui vai: a franquia Grand Theft Auto, da Rockstar, com toda a sua grandiosidade técnica e influência cultural, nunca conseguiu me conquistar completamente. Não me entenda mal – eu reconheço, sem sombra de dúvida, que esses jogos são obras-primas da engenharia de software. A imersão que eles oferecem é algo à parte. Mas, sabe aquela sensação de estar diante de algo incrível, porém que não toca sua alma? É mais ou menos por aí.

A Maestria Técnica Inquestionável

Vamos começar pelo que a Rockstar faz de melhor, e que ninguém pode negar. Os mundos abertos de GTA, desde a virada para o 3D com GTA III, são construídos com um nível de detalhe que beira o obsessivo. A cidade respira. Você pode passar minutos apenas observando os NPCs seguirem suas rotinas aparentemente caóticas, ouvindo conversas aleatórias no celular, ou vendo o ciclo dia/noite pintar os arranha-céus de Liberty City ou Los Santos.

É uma vitrine do que a tecnologia pode alcançar. A física, os sistemas de tráfego, a quantidade absurda de conteúdo – desde missões principais até atividades secundárias como golfe ou tênis – tudo é polido até brilhar. A Rockstar estabeleceu o padrão-ouro para mundos abertos, e inúmeros jogos que vieram depois tentaram, com maior ou menor sucesso, emular essa fórmula. Eles não criaram apenas jogos; criaram simulações sociais interativas, repletas de sátira e crítica.

O Elemento que Falta: Conexão Emocional

Aqui é onde minha experiência pessoal diverge da opinião popular. Com toda essa riqueza técnica, por que a franquia não ressoa comigo? Acredito que o cerne da questão está nos protagonistas e na narrativa.

Os personagens de GTA são, em sua maioria, figuras cômicas e exageradas, arquétipos de criminosos que servem mais como veículos para o caos do que como pessoas com quem você genuinamente se importa. Claro, há exceções – a história dos três protagonistas em GTA V tem seus momentos de brilhantismo. Mas, no geral, a sensação é de que você está pilotando um boneco em um playground gigante, não vivendo uma jornada transformadora.

Compare, por exemplo, com a profundidade emocional que a própria Rockstar alcançou em Red Dead Redemption 2 com Arthur Morgan. Lá, cada ação, cada diálogo, constrói um personagem complexo. Em GTA, muitas vezes me sinto como um espectador de uma comédia de humor ácido, não como um participante ativo de um drama. E talvez seja essa a intenção – a sátira pode exigir certo distanciamento. Mas, para mim, isso cria uma barreira.

Jogabilidade vs. Experiência

Outro ponto crucial: a jogabilidade central. Dirijir atropelando meio mundo, atirar, fugir da polícia... a fórmula é incrivelmente bem executada, mas depois de algumas dezenas de horas, pode começar a sentir-se repetitiva. A liberdade é ilusória em muitos aspectos; você é livre para causar o caos, mas as missões principais frequentemente seguem um roteiro linear com margem mínima para criatividade real.

E aí está uma ironia: o mundo é tão vivo e cheio de possibilidades, mas os objetivos que você persegue dentro dele podem parecer... mecânicos. É como ter o carro mais potente do mundo, mas só poder dirigir em um circuito oval. Você admira a máquina, mas sente falta das estradas sinuosas, da viagem imprevisível.

Não estou dizendo que os jogos são ruins. Longe disso. Eles são divertidíssimos em rajadas. Mas essa diversão, para mim, é efêmera. Quando desligo o console, pouco fica. Não fico remoendo as escolhas de um personagem ou maravilhado com a beleza de uma paisagem (embora os sunsets em Los Santos sejam lindos). Fico com a memória de uma piada engraçada ou de uma perseguição maluca. É entretenimento puro, de alta qualidade, mas que não mexe com minhas camadas mais profundas como jogador.

E você, já sentiu isso com alguma franquia aclamada? Aquele jogo que todo mundo ama, que ganha todos os prêmios, mas que, por mais que você tente, não consegue se conectar? Às vezes, a maestria técnica e a popularidade esmagadora podem criar uma expectativa tão alta que a experiência real, por mais boa que seja, parece faltar algo. No caso do GTA, talvez seja a alma por trás do espetáculo. Ou talvez eu seja apenas um velho rabugento que não aprecia devidamente o caos organizado. A beleza dos games está justamente nisso: não há uma resposta certa, apenas experiências pessoais.

E sabe o que é curioso? Às vezes penso se essa falta de conexão não é, em parte, um efeito colateral do próprio sucesso da franquia. Quando algo se torna tão massivo, tão onipresente na cultura pop, cria-se uma espécie de "expectativa por osmose". Você ouve falar tanto, vê tantos memes, tantas análises entusiasmadas, que quando finalmente senta para jogar, sua mente já está saturada de impressões alheias. Fica difícil separar o que é sua experiência genuína do que você acha que deveria estar sentindo. Já aconteceu com você?

Não é como se eu não tivesse me divertido, claro. Lembro vividamente das primeiras horas em GTA IV, com Niko Bellic chegando a Liberty City. A chuva batendo no parabrisa do táxi, a névoa sobre os prédios, a promessa de uma nova vida em uma terra estranha... aquela introdução era cinematográfica, cheia de melancolia. Mas, conforme a história avançava, aquela nuance inicial parecia se dissolver em uma série de trabalhos para figuras caricatas. A sensação de estar em um simulador de tarefas criminosas voltava com força total.

O Peso da Sátira e a Distância do Jogador

Outro aspecto que merece uma reflexão mais profunda é o tom satírico, que é a espinha dorsal da série. A Rockstar é mestre em espelhar e distorcer os piores excessos da sociedade americana – o consumismo desenfreado, a cultura das celebridades, a corrupção política, a violência banalizada. É brilhante, sem dúvida. Mas essa sátira constante, esse cinismo perpétuo, pode criar uma parede de vidro entre o jogador e o mundo.

Você nunca está verdadeiramente imerso; está sempre sendo lembrado de que aquilo é uma piada, uma crítica. Todos os personagens de rádio são paródias, todas as propagandas são absurdas, todos os NPCs falam bobagens. É engraçado, sim, mas depois de um tempo, essa camada de ironia impede qualquer tentativa de se levar o mundo a sério, mesmo que por um momento. E talvez essa seja a intenção, mas eu, pessoalmente, sinto falta de momentos de autenticidade genuína dentro daquele caos.

Compare com algo como Cyberpunk 2077 (apesar de seus problemas iniciais). Night City é igualmente caótica, violenta e satírica, mas ela permite momentos de quietude e humanidade inesperados. Você pode sentar em um bar com um amigo e ter uma conversa sincera sobre medo e arrependimento. Em GTA, um momento assim provavelmente terminaria com o bar explodindo. O humor é o filtro principal, e tudo passa por ele.

A Liberdade que Não é Totalmente Livre

Vamos falar sobre a tal "liberdade" que é o cartão de visita da série. É inegável a empolgação de poder ir a qualquer lugar, roubar qualquer carro, subir em qualquer prédio. Nos primeiros minutos, a sensação é de puro poder. Mas, com o tempo, você começa a perceber os limites dessa liberdade.

As missões, o núcleo da progressão, são notoriamente lineares. Desvie um milímetro do roteiro pretendido e você recebe a temida tela de "MISSÃO FALHADA". Quer resolver um problema de forma criativa, usando o ambiente de um jeito não previsto? Boa sorte. O jogo frequentemente te força a seguir um script muito específico. É uma contradição fascinante: um mundo aberto gigantesco, mas com trilhos invisíveis bem definidos quando o assunto é a narrativa principal.

E as atividades secundárias? Muitas são, na prática, minijogos desconectados – uma partida de tênis, uma corrida de rua, uma ida ao cinema. São divertidas, mas raramente se integram de forma orgânica à vida do seu personagem ou ao tecido do mundo. Elas estão lá, como opções em um menu. Você não descobre uma paixão por golfe com o Michael; você simplesmente clica no ícone do campo de golfe no mapa. Falta um fio condutor, uma motivação interna que faça aquilo fazer sentido além de "conteúdo para consumir".

Isso me leva a uma questão maior sobre o design de mundos abertos. O que vale mais: a quantidade de coisas para fazer ou a qualidade da interação com elas? GTA apostou pesado na quantidade, criando um playground inigualável. Mas, em alguns jogos mais focados, como um The Legend of Zelda: Breath of the Wild, cada descoberta, cada interação com o ambiente, parece ter um peso maior, uma consequência mais palpável no seu entendimento do mundo. São filosofias de design diferentes, e a da Rockstar prioriza o escopo monumental.

O Legado e a Expectativa para o Futuro

Com o anúncio de GTA VI, a discussão ganha novos ares. Os trailers prometem um salto técnico ainda mais absurdo, um retorno a Vice City com um nível de detalhe que faz o V parecer antigo. A pergunta que fica é: a Rockstar vai inovar apenas na escala, ou vai tentar injetar uma nova profundidade na fórmula?

Os rumores sobre uma protagonista feminina, Lucia, são animadores. Será que uma nova perspectiva narrativa pode trazer a carga emocional que senti faltar? A Rockstar já provou que sabe criar personagens complexos e cativantes em outros títulos. Será que GTA VI será o momento em que eles decidem fundir sua maestria técnica com uma narrativa que priorize a conexão tanto quanto o caos?

Talvez o maior desafio seja equilibrar o DNA satírico e hiperativo da franquia com momentos de verdadeira humanidade. Inserir brechas na parede de ironia para que o jogador respire e se conecte. Afinal, até no mundo real mais caótico existem momentos de quietude, de dúvida, de vulnerabilidade. Capturar isso sem perder a identidade seria o verdadeiro marco evolutivo.

Enquanto isso, continuo na minha posição peculiar de admirador distante. Reconheço a genialidade, me divirto com o sandbox, mas sempre com a sensação de que estou do lado de fora de uma vitrine, observando um espetáculo incrível que, por alguma razão, não me convida verdadeiramente para dentro. E talvez essa seja a beleza do medium: não precisamos amar tudo unanimemente. O fato de uma franquia poder ser tão monumental e, ao mesmo tempo, deixar espaço para esse tipo de reflexão crítica e pessoal, já diz muito sobre sua importância. Ela não é apenas um jogo; é um fenômeno cultural que serve de espelho, e cada um vê um reflexo diferente.

Com informações do: IGN Brasil