Imagine a cena: você está mestrando uma campanha de RPG de super-heróis. De um lado da mesa, um jogador interpreta um ser cósmico capaz de voar, lançar raios de calor e sobreviver a explosões solares. Do outro, outro jogador escolheu um gênio bilionário com um cinto de utilidades e um plano para tudo. Como, diabos, fazer com que ambos se sintam igualmente relevantes e poderosos durante a sessão? Esse é um dos desafios mais antigos e espinhosos para mestres de jogos de interpretação, mas parece que um sistema encontrou uma solução elegante.
O problema, claro, vai muito além dos quadrinhos. Qualquer cenário de fantasia ou ficção científica que misture magia divina com habilidade marcial mundana, ou tecnologia futurista com poderes psíquicos, esbarra na mesma questão. O clássico "guerreiro vs. mago" em Dungeons & Dragons é apenas a ponta do iceberg. Quando um personagem pode resolver um conflito com um feitiço de nível 9 e o outro precisa se esgueirar e usar uma adaga envenenada, a dinâmica do grupo pode ficar estranha, para dizer o mínimo. É frustrante para o jogador do personagem "mais fraco" e desafiador para o mestre, que precisa criar ameaças que sejam um desafio para o deus andante, mas não esmaguem instantaneamente o humano comum.
A Elegante Solução dos "Tiers"
Foi exatamente esse quebra-cabeça que o RPG da Liga da Justiça (JLU RPG) decidiu enfrentar de frente. Em vez de tentar equilibrar estatísticas ponto a ponto – uma tarefa praticamente impossível quando se compara a força do Superman com a do Batman – o sistema introduziu o conceito de Tiers (ou Níveis). A ideia é brilhantemente simples: reconhece que os personagens operam em escalas de poder fundamentalmente diferentes, e em vez de fingir que são iguais, cria regras e expectativas diferentes para cada nível.
Pense assim: em um Tier mais baixo, um sucesso em um teste de força pode significar arrombar uma porta de metal. No Tier do Superman, o mesmo sucesso pode significar desviar um meteoro. O Batman não precisa, de repente, desenvolver super-força para ser útil. Suas contribuições são medidas na escala dele – desvendar conspirações globais, hackear sistemas de defesa, usar a inteligência e a preparação para neutralizar ameaças que a força bruta não consegue tocar. O sistema não tenta fazer todos darem a mesma quantidade de dano; ele garante que todos tenham um impacto narrativo equivalente, cada um à sua maneira.
Para Além dos Super-Heróis: Uma Lição para Todos os RPGs
O que mais me impressiona nessa abordagem é sua aplicabilidade universal. Não é uma mecânica só para jogos de capa e espada. Qualquer mestre que já tentou misturar um novato com personagens veteranos em uma campanha longa, ou que quis incluir um NPC extremamente poderoso sem roubar a cena dos jogadores, pode se beneficiar desse pensamento.
Em uma campanha de terror cósmico, por exemplo, você poderia ter um Tier para investigadores humanos comuns e outro para entidades antigas ou aliados parcialmente enlouquecidos pelo conhecimento proibido. As regras de interação com o mundo, os tipos de desafios e até as consequências do fracasso seriam diferentes. O investigador humano pode morrer para uma bala; a entidade antiga pode ter que lidar com a perda de sua conexão com a realidade ou o fechamento de um portal dimensional que a sustenta. O estresse e o perigo são equivalentes, mas manifestados de formas que fazem sentido para a escala de cada personagem.
E isso nos leva a um ponto crucial: o papel do mestre. Um sistema com Tiers exige mais do narrador? Em certo sentido, sim. Ele precisa pensar em múltiplas camadas de conflito e garantir que cada jogador, independente do Tier, tenha seu momento de brilhar e enfrente obstáculos significativos. Mas, por outro lado, ele liberta o mestre da impossível tarefa de criar um combate que seja justo para o mago que conjura terremotos e para o ladino que usa adagas. O desafio deixa de ser puramente numérico e se torna narrativo. Em vez de ajustar pontos de vida e dano, você ajusta o escopo e a natureza dos problemas apresentados.
Claro, a implementação precisa ser cuidadosa. Os jogadores precisam entender e comprar a ideia desde o início. Ninguém quer se sentir "rebaixado". A chave está em comunicar que um Tier mais baixo não é menos importante ou menos heroico; é simplesmente uma arena diferente. A tensão em um thriller de espionagem pode ser tão palpável e mortal quanto em uma batalha intergaláctica. A vitória do Batman não é medido por quantos tanques ele destrói, mas por quantas crises ele previne com um plano inteligente. O sistema de Tiers, quando bem feito, não segrega o grupo – ele especializa as funções e celebra a diversidade de contribuições. Talvez seja a ferramenta que faltava para finalmente colocar deuses e mortais na mesma mesa, não como desequilíbrio, mas como uma verdadeira equipe.
Mas vamos pensar em como isso funciona na prática, na mesa de jogo. Você, como mestre, prepara uma sessão. O vilão da vez é um gênio da tecnologia que está hackeando satélites para causar blecautes globais. O jogador do Superman, no Tier cósmico, pode receber a missão de interceptar um míssil nuclear lançado como distração no espaço. Enquanto isso, o jogador do Batman, no Tier de pico humano/tecnológico, está em uma torre de controle tentando rastrear a origem dos sinais de hackeamento em tempo real, enquanto enfrenta guardas de elite. Ambos estão sob pressão, ambos têm consequências catastróficas para o fracasso, mas a "arena" de cada um é completamente diferente. O sistema não força o Batman a ter que levantar o míssil com as mãos, nem obriga o Superman a decifrar linhas de código sob pressão de tempo (a menos que seja uma fraqueza narrativa interessante para explorar).
E é aí que a coisa fica realmente interessante. Porque os Tiers não são apenas sobre o que você pode fazer, mas também sobre o que você não pode fazer facilmente, e sobre como o mundo reage a você. Um personagem de Tier cósmico pode achar trivial atravessar paredes de aço, mas sua mera presença em uma cidade pode causar pânico em massa, atrair a atenção de governos e de outros seres cósmico, ou perturbar campos de energia sutis. Suas soluções para problemas pequenos podem ser desastrosamente brutas. Como desarmar um terrorista humano sem vaporizá-lo acidentalmente junto com o quarteirão?
O Poder da Especialização e das Fraquezas Narrativas
O sistema do JLU RPG, e essa filosofia por trás dos Tiers, entende algo fundamental: o que torna um personagem como o Batman fascinante não é a falta de poder, mas a sua especialização extrema e suas fraquezas narrativas definidoras. No jogo, isso é traduzido em mecânicas. Personagens de Tiers mais baixos costumam ter mais "pontos de história", recursos especiais ou habilidades únicas de suporte que os permitem afetar a cena de maneiras que os seres poderosos não conseguem. Eles são os mestres do plano contingente, do dado guardado na manga, da informação crucial.
Enquanto o Superman luta com o monstro de energia no céu, é o Batman no solo, com seu Tier, quem descobre que o monstro é alimentado por uma frequência específica de rádio sendo transmitida de uma torre próxima. Ele não pode voar até lá e destruí-la com seus punhos? Não, mas ele pode hackear o sistema de transmissão ou guiar um aliado menos óbvio até o local. Seu impacto é catalítico. Ele muda as condições do campo de batalha para os outros. Em muitos RPGs tradicionais, esse tipo de contribuição é subvalorizado ou depende puramente da boa vontade do mestre. Com um sistema de Tiers, ela é embutida nas regras e esperada.
E as fraquezas? Ah, as fraquezas são o tempero. Em um jogo balanceado de forma tradicional, uma fraqueza como a vulnerabilidade do Superman à kryptonita é muitas vezes um inconveniente raro controlado pelo mestre. Num sistema com Tiers, ela se torna um pilar central da identidade e do drama do personagem. Operar em um Tier cósmico significa que suas vulnerabilidades são igualmente cósmicas, raras e devastadoras. Já para um personagem de Tier mais baixo, as fraquezas são mais frequentes e mundanas – lealdades conflitantes, limites físicos, traumas do passado. O sistema cria uma espécie de equilíbrio trágico: quanto maior o poder, mais específica e existencial é a ameaça que pode te derrubar.
Adaptando a Ideia para o Seu Jogo Favorito
Você não precisa jogar o JLU RPG para roubar essa ideia. Qualquer mestre com um pouco de criatividade pode importar o conceito de Tiers para seu sistema preferido. A primeira pergunta a fazer é: "Quais são as escalas de poder narrativo em meu cenário?"
Fantasia Medieval: Poderia ter o Tier dos Heróis Mortais (guerreiros, ladinos, arqueiros), o Tier dos Moldadores de Magia (magos, clérigos invocando poderes divinos) e o Tier dos Entidades (fadas anciãs, fragmentos de deuses, dragões ancestrais que os jogadores podem eventualmente interpretar ou fazer pactos com).
Cyberpunk: O Tier dos Street-Level (mercenários, hackers de garagem, detectives), o Tier dos Corporativo/Enhancado (ciborgues de elite, executivos com exércitos privados) e o Tier da IA Emergente (inteligências artificiais que percebem a rede como um corpo, com objetivos inefáveis).
Horror: O Tier dos Investigadores (humanos frágeis buscando a verdade), o Tier dos Iniciados (aqueles que tocaram o sobrenatural e ganharam insights ou maldições) e o Tier do Outro Lado (entidades que os jogadores podem temporariamente canalizar ou negociar, com um custo terrível).
A implementação prática pode ser mais ou menos formal. Você pode simplesmente definir, em conversa com os jogadores, que "nesta campanha, o personagem A opera na escala de problemas de reino, e o personagem B na escala de problemas de cidade". E então, mestrar de acordo. Quando um problema de reino surgir (uma invasão orc), o personagem A terá o protagonismo. Quando a trama descer para os becos da cidade (um culto secreto sequestrando artesãos), o personagem B brilhará. O importante é que todos saibam que seus momentos virão, e que a relevância não é uma competição.
Alguns sistemas já fazem algo parecido de forma embutida, mesmo sem chamar de Tiers. Em Fate, por exemplo, a ideia de "permissões narrativas" e a escala de rolagem (Ótimo, Supendo, etc.) pode ser esticada para acomodar diferentes escalas. Um personagem com o aspecto "Deus do Trovão" simplesmente tem permissão para tentar coisas que um personagem com "Detetive Cínico" não tem. O mestre pode dizer: "Para você, desviar esse raio laser é um desafio Difícil (+2). Para o Deus do Trovão, é rotineiro – ele automaticamente consegue, a menos que algo especial (como magia de contenção) esteja atrapalhando."
O que essa abordagem exige, talvez mais do que qualquer regra escrita, é uma mudança de mentalidade. Todos na mesa – mestre e jogadores – precisam abandonar a ideia de que "equilíbrio" significa que todos dão o mesmo dano por rodada ou têm o mesmo bônus numérico. O equilíbrio passa a ser medido em tempo de destaque narrativo, em impacto na história e em satisfação ao resolver problemas na sua própria escala. É um acordo social tão importante quanto qualquer ficha de personagem.
E isso levanta uma questão interessante: será que a nossa obsessão por balanceamento numérico perfeito nos RPGs, especialmente nos mais tradicionais, não é, às vezes, um obstáculo para contar histórias realmente épicas e desiguais? Histórias como as que vemos nos mitos, nos quadrinhos e no cinema, justamente onde um Arthur frágil puxa a espada da pedra e um Merlin quase onisciente o guia? O sistema de Tiers não é uma correção de regras, mas um convite para repensar que tipos de histórias queremos contar juntos. Talvez a resposta para a pergunta "como jogar com Superman e Batman na mesma mesa" não esteja em mudar as regras do mundo, mas em mudar a forma como entendemos o nosso próprio jogo.
Com informações do: IGN Brasil











