O cenário automotivo global está passando por transformações profundas, e a nova geração do Mitsubishi Eclipse Cross é um exemplo emblemático dessa mudança. O que era para ser uma simples atualização tornou-se uma revelação surpreendente: o SUV agora é essencialmente um Renault Scenic E-Tech elétrico com emblemas Mitsubishi.

Uma estratégia de compartilhamento que redefine identidades

Esta não é a primeira vez que a aliança entre Renault e Mitsubishi resulta em modelos compartilhados. A prática já deu origem ao Mitsubishi Colt (basicamente um Clio remodelado), ao ASX (que é praticamente um Captur) e ao Grandis (um Symbioz).

Essa estratégia de compartilhamento de plataformas e componentes não é exatamente nova no setor automotivo, mas a extensão com que está sendo aplicada na aliança Renault-Nissan-Mitsubishi chama atenção. A redução de custos de desenvolvimento é significativa, mas me pergunto até que ponto isso não dilui a identidade das marcas envolvidas.

Mitsubishi Eclipse Cross elétrico

Design: entre a herança e a nova identidade

Visualmente, a Mitsubishi tentou injectar alguns elementos de sua identidade no Eclipse Cross. Na dianteira, a porção central tenta recriar o clássico "escudo" da marca japonesa - embora sem grade central, já que se trata de um modelo elétrico.

As peças de iluminação inferiores apresentam traços horizontais de LED que fazem parte da nova linguagem design da Mitsubishi. No entanto, os faróis altos e esguios são claramente herdados do Scenic E-Tech, assim como o capô - que ganha vincos centrais exclusivos, mas mantém o mesmo corte básico.

Perfil do Mitsubishi Eclipse Cross

De perfil, a semelhança é ainda mais evidente. Apenas as rodas diferenciam os dois modelos - o Eclipse Cross oferece opções de 19 ou 20 polegadas com acabamento diamantado. Na traseira, as lanternas mantêm exatamente o mesmo formato do Scenic, mas com um layout de iluminação exclusivo e uma faixa preta que interliga as peças, tentando criar uma ilusão de diferença.

Interior: onde a similaridade é mais evidente

É no habitáculo que a estratégia de compartilhamento se mostra mais transparente. A única diferença significativa está no miolo do volante, que troca o losango da Renault pelos três losangos da Mitsubishi - além, é claro, dos revestimentos específicos.

Todo o resto é idêntico: o quadro de instrumentos digital de 12,3 polegadas, a central multimídia vertical de 12 polegadas, e toda a arquitetura do painel. A lista de equipamentos é generosa, incluindo sistema de som Harman Kardon, iluminação ambiente LED com múltiplas cores, teto de vidro eletrocrômico, integração com serviços Google, carregamento por indução e sistemas de condução semiautónomos.

Interior do Mitsubishi Eclipse Cross

Mecânica: compartilhamento total

Na parte técnica, não há surpresas: o Eclipse Cross herda integralmente a mecânica do Scenic E-Tech. Isso significa motor elétrico dianteiro com 218 cv de potência e bateria de 87 kWh, que according to a Mitsubishi proporciona autonomia de até 600 km. O sistema aceita recarga rápida de até 150 kW.

O que me intriga nessa estratégia é como ela será percebida pelos consumidores. De um lado, temos a eficiência económica e tecnológica de compartilhar plataformas; do outro, a potencial diluição da identidade das marcas. Será que os fãs da Mitsubishi estarão dispostos a aceitar que seu Eclipse Cross é, na essência, um Renault?

E mais: como isso afecta a percepção de valor? Marcas tradicionalmente constroem sua identidade através de características únicas de design, engenharia e experiência de condução. Quando essas fronteiras se tornam tão difusas, o que realmente diferencia uma marca da outra além do emblema no capô?

O impacto no mercado e na percepção do consumidor

Esta estratégia de badge engineering radical levanta questões fascinantes sobre o futuro das marcas automóveis. Quando praticamente tudo é partilhado - da plataforma à eletrónica, passando pela mecânica e até pelo design básico - o que realmente define a identidade de uma marca? Será que os consumidores ainda valorizam a herança e a tradição quando o produto é essencialmente o mesmo?

Na minha experiência, os entusiastas mais tradicionais da Mitsubishi podem sentir-se desapontados. A marca sempre foi associada a veículos robustos, com tração integral e capacidades off-road, características que definiram modelos como o Pajero e o Lancer Evolution. O Eclipse Cross elétrico, sendo basicamente um Renault, representa uma rutura radical com essa identidade.

No entanto, é preciso reconhecer a realidade económica por trás destas decisões. Desenvolver uma plataforma elétrica exclusiva é incrivelmente dispendioso, e para marcas como a Mitsubishi - que não tem o volume de vendas de gigantes como Toyota ou Volkswagen - o compartilhamento de plataformas torna-se quase uma questão de sobrevivência.

Vantagens competitivas e desafios de marketing

Do ponto de vista técnico, o Eclipse Cross herda todas as virtudes do Scenic E-Tech, que é um veículo elétrico competentíssimo. A autonomia de 600 km coloca-o na frente de muitos concorrentes, e o sistema de infotainment é moderno e intuitivo. Mas como vender esta história ao consumidor?

O marketing terá que fazer malabarismos: por um lado, destacar as vantagens técnicas do veículo; por outro, tentar criar uma narrativa que preserve algum sentido de identidade Mitsubishi. Será que vão enfatizar supostos "reajustes na suspensão" ou "calibração específica dos sistemas eletrónicos" para justificar a diferença?

Conheço casos em que estas estratégias de badge engineering funcionaram brilhantemente - o Toyota GT86/Subaru BRZ é um exemplo clássico de sucesso. Mas também há exemplos menos felizes, onde os consumidores perceberam que estavam a pagar mais por basicamente o mesmo carro com um emblema diferente.

O preço como factor decisivo

Aqui reside talvez o aspecto mais interessante desta estratégia. Se a Mitsubishi conseguir posicionar o Eclipse Cross com um preço significativamente mais baixo que o Scenic E-Tech equivalente, a proposta pode tornar-se irresistível para muitos compradores. Afinal, quem não quer poupar alguns milhares de euros pelo mesmo produto?

Mas se os preços forem similares, o desafio de marketing torna-se monumental. Porque escolher o "clone" em vez do original? A menos que a Mitsubishi consiga criar uma proposta de valor adicional através do seu network de concessionários, serviços pós-venda ou garantias extendidas, fica difícil justificar a escolha.

E isto levanta outra questão: como ficam os concessionários Mitsubishi? Tradicionalmente, vendedores orgulham-se de apresentar as características únicas dos seus produtos. Como vão explicar aos clientes que o que estão a vender é, na prática, um Renault?

O futuro da aliança e possíveis desenvolvimentos

Rumores na indústria sugerem que esta estratégia de compartilhamento vai intensificar-se ainda mais. Há conversas sobre a próxima geração do Mitsubishi Outlander ser baseada no Renault Austral, e até mesmo modelos maiores poderão partilhar plataformas com os futuros SUVs elétricos da Renault.

Isto me faz pensar: estamos a assistir ao início de uma consolidação silenciosa da indústria automóvel? Num mundo onde a eletrificação e a tecnologia autónoma exigem investimentos colossais, será que marcas tradicionais vão gradualmente transformar-se em exercícios de branding sobre produtos comuns?

O caso do Eclipse Cross pode ser um precedente importante. Se for bem-sucedido no mercado, outras marcas do grupo - e mesmo concorrentes - poderão seguir o mesmo caminho. Mas se os consumidores rejeitarem esta abordagem, a estratégia poderá precisar de ser repensada.

Há também implicações geopolíticas interessantes. A Mitsubishi é uma marca japonesa tradicional, enquanto a Renault é francesa. Em mercados onde sentimentos nacionalistas ou preferências por indústria local são fortes, esta fusão de identidades pode criar resistências inesperadas.

E quanto à engenharia? Parte de mim questiona se, a longo prazo, esta estratégia não poderá enfraquecer a capacidade de inovação individual das marcas. Quando se depende completamente de outra empresa para o desenvolvimento de plataformas, será que se perde o know-how e a capacidade de criar soluções próprias?

Com informações do: Quatro Rodas