A discussão sobre o uso de Inteligência Artificial generativa na indústria de jogos ganhou mais um capítulo recentemente, e desta vez o centro das atenções é a Larian Studios, desenvolvedora do aclamado Baldur's Gate 3. Após uma onda de especulações e críticas nas redes sociais, o CEO da empresa, Swen Vincke, decidiu sair da defensiva e adotar uma postura mais direta. Em vez de ignorar o burburinho, ele anunciou que vai responder pessoalmente às dúvidas dos jogadores sobre o assunto. Uma mudança de tática que, convenhamos, é bem mais interessante do que o silêncio corporativo padrão.

O que exatamente está em jogo na polêmica?

O cerne da questão não é a IA de forma geral – ferramentas para otimização de código ou testes, por exemplo, já são comuns. A polêmica gira em torno da IA generativa, aquela usada para criar texto, diálogos, arte conceitual, música ou até vozes a partir de prompts. Muitos desenvolvedores e fãs temem que seu uso possa padronizar narrativas, substituir artistas e escritores, e resultar em um conteúdo mais genérico e menos autoral. Para um estúdio como a Larian, conhecida pela profundidade narrativa e pelos detalhes artesanais de seus RPGs, qualquer sinal de adoção dessas ferramentas soa como um alarme para a comunidade.

E não é para menos. A indústria vive um momento de tensão. De um lado, a pressão por eficiência e redução de custos; do outro, a demanda dos jogadores por experiências únicas e com "alma". Quando o rumor começou a circular, a reação foi imediata. Fóruns e redes sociais foram inundados com preocupações: a magia de Baldur's Gate 3 seria replicável por uma máquina? Os próximos jogos da Larian perderiam aquele toque humano que os tornou especiais?

A resposta de Swen Vincke: do silêncio ao diálogo

Inicialmente, a Larian manteve o hábito corporativo de não alimentar o fogo. Mas Swen Vincke parece ter percebido que, nesse caso, o silêncio só alimentava mais desconfiança. A decisão de se pronunciar e se abrir para perguntas é, na minha opinião, um movimento astuto. Em vez de deixar o vácuo ser preenchido por suposições, ele está tentando controlar a narrativa através da transparência.

O que ele vai revelar? É difícil dizer. Talvez explique que usam IA apenas para tarefas muito específicas e não-criativas, como gerar variações de textura de grama ou otimizar processos técnicos. Ou talvez admita experimentos em áreas narrativas, mas com supervisão humana rigorosa. De qualquer forma, o fato de ele se colocar na linha de frente é significativo. Mostra que a empresa valoriza sua relação com os fãs e entende que a confiança é um ativo frágil.

Afinal, você compraria um RPG narrativo sabendo que todos os diálogos foram escritos por um LLM (Large Language Model), mesmo que bem ajustado? A resposta para muitos é um sonoro "não".

Um reflexo de um debate muito maior

O caso da Larian é só a ponta do iceberg. A indústria inteira está tentando navegar por essas águas turvas. Grandes publicadoras investem pesado em pesquisa de IA, enquanto artistas e escritores lutam por proteções em seus contratos. A própria IGN e outros veículos cobrem frequentemente os desdobramentos desse embate.

O que torna essa situação particularmente delicada é a aura da Larian. Eles são vistos como "os bons", um estúdio que prioriza a qualidade e o respeito pelo jogador acima do lucro rápido. Suas escolhas, portanto, têm um peso simbólico enorme. Se eles abraçarem a IA generativa de forma ampla, pode ser um sinal para o mercado de que "é isso que vem por aí". Se rejeitarem publicamente, podem fortalecer um movimento contrário.

E no meio disso tudo, ficam os jogadores. Nós, que consumimos o produto final. A nossa preocupação genuína é se as histórias que amamos vão continuar a nos surpreender e emocionar, ou se se tornarão produtos calculados e previsíveis. A decisão da Larian de trazer essa conversa para a luz pública, em vez de escondê-la nos corredores do estúdio, é um primeiro passo positivo. Resta saber se as respostas vão acalmar os ânimos ou acender novos debates.

Mas vamos pensar um pouco além do caso específico. O que realmente está em jogo quando falamos de IA generativa em desenvolvimento de jogos? Não é só uma questão de "usar ou não usar". É uma mudança de paradigma na própria cadeia de produção. Imagine um escritor de narrativas que, em vez de começar com uma página em branco, recebe um primeiro rascunho gerado por IA com base em um prompt como "crie um conflito para um grupo de aventureiros em uma taverna sombria". O trabalho dele deixa de ser criar do zero e passa a ser editar, refinar e dar alma a algo que já existe em forma bruta. Isso é um ganho de produtividade ou uma erosão da autoria criativa? Depende de quem você pergunta.

E os artistas? Conversando com um amigo que trabalha com concept art, ele me contou algo revelador: "Às vezes, clientes já chegam com imagens do Midjourney ou DALL-E e pedem para 'apenas finalizar' ou criar variações." O briefing deixa de ser uma descrição textual ou um moodboard e vira uma imagem quase pronta. O papel do artista se transforma, e nem sempre para melhor. Para estúdios independentes ou com orçamentos apertados, a tentação de usar essas ferramentas para baratear custos iniciais é enorme. A Larian, com o sucesso financeiro de Baldur's Gate 3, tem um privilégio que muitos estúdios não têm: o de poder escolher.

E não podemos ignorar o aspecto legal, que é uma verdadeira mina terrestre. Quem é o dono do copyright de um diálogo escrito por um LLM treinado em milhões de livros e roteiros protegidos? A ferramenta? O estúdio que a operou? O funcionário que digitou o prompt? É um território inexplorado que vai render anos de processos judiciais. Algumas empresas, temendo futuras ações, já estão criando bancos de dados internos com conteúdo 100% original para treinar seus próprios modelos de IA, tentando criar um ciclo "limpo". Mas será que isso é realmente possível, ou todo treinamento acaba, de alguma forma, incorporando influências externas?

O jogador no banco do motorista: nossa percepção vai mudar?

Aqui está um ponto que me intriga pessoalmente: o conhecimento do uso de IA afeta nossa experiência com o jogo? É um viés inescapável. Saber que um personagem marcante foi concebido por uma máquina pode, conscientemente ou não, diminuir o impacto emocional da sua história. A magia se dissipa um pouco. Por outro lado, se a ferramenta for usada de forma tão transparente e integrada que não notamos a diferença, isso a torna mais aceitável? É uma linha tênue entre inovação e decepção.

Lembro de uma discussão similar quando a dublagem por síntese de voz começou a melhorar. Alguns jogos usam para gerar falas de NPCs secundários. Quando funciona perfeitamente, você nem percebe. Mas quando falha, soa horrivelmente artificial e quebra a imersão completamente. Com narrativa e arte, o risco é ainda maior, porque toca no cerne do que consideramos "expressão humana". Um diálogo pode ser gramaticalmente perfeito e ainda assim carecer de subtexto, ironia ou aquela centelha de imprevisibilidade que um bom escritor humano insere.

E então surge a pergunta: os jogadores vão começar a "caçar" sinais de IA? Vamos nos tornar detectores amadores, analisando texturas, diálogos e designs em busca de pistas de automação? Já existem comunidades online dedicadas a tentar discernir o que é "feito à mão" do que é gerado. Isso cria um novo tipo de paranoia no consumo cultural. A confiança, que já é um bem frágil entre consumidores e grandes corporações, pode se tornar o principal campo de batalha.

O que esperar das respostas de Vincke?

Voltando ao anúncio do CEO da Larian, a expectativa é alta. Mas é preciso ser realista. Ele provavelmente não vai entregar um relatório técnico de 50 páginas detalhando cada fluxo de trabalho. Suas respostas serão, necessariamente, em algum nível, de relações públicas. O desafio será equilibrar transparência com a proteção de segredos comerciais e da propriedade intelectual do estúdio.

O que seria realmente revelador? Se ele detalhasse como a tomada de decisão sobre o uso de IA acontece dentro da Larian. Existe um comitê ético? Há diretrizes escritas sobre o que é permitido e o que é proibido? Os artistas e escritores têm poder de veto se sentirem que uma ferramenta está comprometendo sua visão? As respostas para essas perguntas dariam muito mais insight sobre a cultura do estúdio do que um simples "sim, usamos para X" ou "não, nunca usamos".

Além disso, seu tom será crucial. Um tom defensivo ou excessivamente técnico pode afastar. Um tom confessional, admitindo dúvidas e experimentações, pode gerar mais empatia. A Larian construiu sua reputação na autenticidade. Como Swen Vincke vai comunicar essa autenticidade em um debate tão carregado de desconfiança? Ele vai usar o momento para fazer uma declaração de princípios para a indústria, posicionando a Larian como uma líder de pensamento, ou vai manter o foco estritamente nas operações do seu próprio estúdio?

Enquanto aguardamos, o burburinho só aumenta. Cada postagem, cada fórum, cada thread no Reddit alimenta a especulação. E talvez esse seja o maior legado desse episódio, independente do que Vincke revele: ele forçou a conversa para o centro do palco. Desenvolvedores, jogadores, artistas e críticos estão todos falando sobre o mesmo tema, com uma urgência rara. Esse diálogo, por mais conturbado que seja, é fundamental para moldar o futuro da indústria. Ignorar a tecnologia é ingênuo. Aceitá-la sem questionamento é perigoso. O caminho do meio – crítico, ponderado e ético – é difícil de traçar, mas é o único sustentável a longo prazo. A postura da Larian, agora sob os holofotes, pode acender um farol para outros navegarem por essas águas ainda tão escuras.

Com informações do: IGN Brasil