Em um cenário dominado por CGI e renderizações hiper-realistas, um sopro de nostalgia artesanal vem ganhando espaço. Aaron Blaise, um nome que carrega décadas de história da animação, decidiu voltar às raízes. E o resultado é um curta-metragem que não apenas celebra uma técnica, mas reacende um debate sobre a alma por trás dos desenhos que marcaram gerações.

Frame do curta-metragem de animação 2D de Aaron Blaise

Um legado que fala através dos traços

Aaron Blaise não é um novato. Sua carreira é um verdadeiro currículo da Era de Ouro da Disney moderna. Ele foi animador supervisor em clássicos como Pocahontas e Mulan, filmes que definiram um estilo visual marcante nos anos 90. Mais tarde, co-dirigiu Irmão Urso, um título que, apesar de sua produção em 2D, já sentia os ventos da mudança tecnológica soprando forte nos estúdios.

E é justamente essa transição que torna seu trabalho atual tão significativo. Blaise viu de perto a indústria migrar quase que integralmente para a animação 3D. Mas, em vez de apenas se adaptar, ele escolheu também preservar e ensinar. Através de seu canal no YouTube e de cursos online, ele tem mantido viva a chama do desenho tradicional. Este novo curta é, de certa forma, a materialização prática de tudo o que ele prega.

Mais do que nostalgia: a textura do feito à mão

É fácil rotular o sucesso do curta como pura nostalgia. Mas será que é só isso? Na minha experiência ao assistir a animações em diferentes formatos, percebo que o 2D carrega uma qualidade quase tátil. Cada linha parece ter uma intenção, uma imperfeição que a torna humana. O movimento, por vezes, segue princípios diferentes – há uma ênfase na expressão e na fluidez que prioriza a emoção sobre o realismo físico absoluto.

O curta protagonizado por um urso polar explora justamente isso. A escolha do animal é interessante, pois sua pelagem e massa poderiam ser um desafio tentador para a renderização 3D. No 2D, porém, o foco se desloca. A textura do pelo é sugerida através de traços e sombreamento, convidando o espectador a completar a imagem com sua imaginação. Há uma conversa entre o artista e quem observa que, de alguma forma, se perde na precisão fria de alguns modelos digitais.

E você, consegue se lembrar da última vez que uma animação te fez parar para admirar um único quadro como se fosse uma pintura?

O futuro é uma mistura, não uma substituição

O trabalho de Blaise não deve ser visto como uma rejeição ao 3D. Longe disso. Muitas das ferramentas digitais atuais são usadas por ele para agilizar processos. A discussão, na verdade, é sobre diversidade e propósito. Cada projeto pede uma linguagem. Enquanto filmes como os da Pixar constroem mundos tridimensionais imersivos, narrativas mais alegóricas ou estilizadas podem encontrar sua voz mais autêntica no 2D.

O sucesso do curta na internet – com milhares de visualizações e comentários saudosistas e de descoberta – prova que existe um público ávido por essa estética. É um lembrete poderoso para a indústria de que o avanço tecnológico não precisa ser uma linha reta que abandona tudo para trás. Pode ser um leque de opções que se expande.

Iniciativas como a de Aaron Blaise mostram que o conhecimento das antigas técnicas é um patrimônio vivo. E, ao compartilhá-lo amplamente, ele não está apenas olhando para o passado, mas garantindo que futuros artistas tenham todas as ferramentas, clássicas e modernas, à sua disposição para contar as histórias que quiserem, da forma que fizer mais sentido. O traço à mão, afinal, sempre será a assinatura mais pessoal que um animador pode deixar.

Mas será que essa "assinatura pessoal" do artista, essa textura única do 2D, pode realmente coexistir com as demandas de produção em massa dos grandes estúdios hoje? É uma pergunta que vai além da estética e toca no cerne da economia criativa. Produzir animação tradicional no nível de qualidade de um O Rei Leão exigia um exército de artistas, cada um especializado em um aspecto – fundos, personagens, efeitos. Era caro, demorado, e é justamente por isso que a indústria abraçou o 3D com tanto fervor: a promessa de eficiência e controle.

No entanto, Blaise e outros artistas que mantêm a tradição viva estão encontrando um caminho interessante no meio digital. Ferramentas como o Toon Boom Harmony ou mesmo o Procreate com suas animações permitem um fluxo de trabalho híbrido. O traço ainda é feito à mão, seja em uma mesa digitalizadora ou no iPad, mas a colorização, a composição de cenas e a pós-produção são infinitamente mais ágeis. O que se perde um pouco do "cheiro de tinta e papel" se ganha em possibilidade de experimentação e, francamente, em viabilidade. É uma evolução natural da técnica, não sua negação.

O resgate de um vocabulário visual esquecido

Algo que me chama atenção ao rever os clássicos em 2D é o uso da metáfora visual. Como a animação podia distorcer a realidade para transmitir um sentimento. Pense na cena em que a Mulan corta o cabelo: o movimento é estilizado, quase uma dança, e o cabelo que cai é tratado com um peso e uma dramaticidade que um simulador de física realista jamais priorizaria. O objetivo ali não era mostrar um corte de cabelo perfeito, era mostrar um momento de ruptura e coragem.

Esse vocabulário – squash and stretch (esmagar e esticar), antecipação, arcos de movimento – foi minuciosamente desenvolvido pelos pioneiros da Disney e da Warner Bros. E, de certa forma, ele foi sendo suavizado na transição para o 3D, onde o realismo muitas vezes dita as regras. O curta do urso polar de Blaise é um exercício ativo desse vocabulário. A forma como o animal se move no gelo, a ênfase em sua massa e força através de traços largos e poses poderosas, tudo isso fala uma linguagem que os espectadores mais jovens, criados quase exclusivamente no 3D, podem não estar totalmente acostumados a decifrar. É quase como aprender a ler um novo tipo de poesia visual.

E isso levanta outra questão: estamos, como audiência, perdendo a capacidade de apreciar a abstração em favor do literal? Quando tudo é tão perfeitamente renderizado, tão próximo do nosso mundo, será que nos tornamos menos imaginativos? A animação 2D, por sua natureza, sempre exigiu um pacto de fé maior com o espectador. Aceitar que uma série de desenhos estáticos, quando passados rapidamente, criam vida. Talvez haja uma magia nesse processo de co-criação que o hiper-realismo, por mais impressionante que seja, simplesmente não consegue replicar.

Uma nova geração de guardiões

O legado de Aaron Blaise talvez não seja apenas o de criar belas animações, mas o de ser um ponte. Seu trabalho educativo é fundamental. Através de seus tutoriais, ele não está apenas ensinando técnicas; está transmitindo uma filosofia. Está mostrando para jovens artistas que a barreira para começar pode ser mais baixa do que imaginam – um lápis, um papel, uma ideia – e que o caminho digital é uma extensão, não um recomeço do zero.

E o efeito já é visível. Plataformas como o YouTube e o Vimeo estão repletas de curtas independentes em 2D que flertam com estilos dos anos 90, 80 ou até anteriores, mas com uma sensibilidade contemporânea. Artistas como James Baxter (outro veterano da Disney) também compartilham seus processos, criando uma rede de conhecimento que antes ficava restrita aos estúdios. Essa democratização é vital. Ela tira a animação tradicional do pedestal da nostalgia inatingível e a coloca nas mãos de qualquer um com paixão e disciplina para aprender.

O sucesso do curta do urso polar online é a prova de que essa chama não só está acesa, como está encontrando novo combustível. Os comentários são uma mistura de pessoas da geração que cresceu com esses filmes e de adolescentes descobrindo um estilo que lhes parece ao mesmo tempo vintage e fresco. É essa interseção que é tão promissora. Não se trata de reviver um passado morto, mas de recontextualizar suas ferramentas mais poderosas para contar as histórias de hoje.

Afinal, qual é a próxima fronteira? Talvez não seja um novo software de renderização que simule cada fio de pelo com ainda mais precisão. Talvez seja justamente o oposto: ferramentas de IA generativa que possam, paradoxalmente, ajudar a emular a irregularidade calorosa do traço humano, aprendendo com os mestres como Blaise. Ou talvez seja o surgimento de um novo grande estúdio que ouse lançar um longa-metragem inteiramente nesse estilo, apostando no apelo de uma estética distinta em um mercado saturado de visual similar. O que o trabalho de Blaise nos diz é que a ferramenta é secundária. A primária, sempre, será a intenção do artista por trás dela. E enquanto houver artistas querendo contar histórias com esse tipo de expressão pessoal e imediata, o 2D, em suas infinitas formas modernas, terá um lugar vital no cenário da animação.

Com informações do: IGN Brasil