O cenário de hardware na China está prestes a dar mais um passo significativo. A Moore Threads, uma das pioneiras no desenvolvimento de GPUs domésticas no país, marcou para o dia 19 de dezembro o seu primeiro MUSA Developer Conference (MDC). O evento será o palco para a revelação oficial da próxima geração de sua arquitetura de processadores gráficos, um movimento que muitos observadores veem como crucial para o futuro da computação independente na China. Mas será que essa nova geração finalmente entregará o desempenho prometido?

Placas de vídeo Moore Threads MTT S80 e S70 lado a lado

Fundada por ex-funcionários da NVIDIA, a Moore Threads não é exatamente uma novata. A empresa já está no mercado desde 2022 com suas placas da série MTT S, como a S80, S70 e S30. No entanto, a jornada tem sido, digamos, cheia de aprendizados. A plataforma MUSA, equivalente ao CUDA da NVIDIA, é o coração tecnológico da empresa, mas sua adoção e otimização no mundo real – especialmente para jogos – ainda estão em um estágio de maturação. A promessa de performance rivalizando com uma RTX 3060 frequentemente esbarrava na realidade de drivers imaturos e suporte limitado a APIs como o DirectX, resultando em um desempenho mais próximo de uma velha conhecida como a GTX 1650. É frustrante quando o hardware parece ter potencial, mas o software trava tudo.

Foco inicial no profissional: um caminho familiar

Olhando para o programa do MDC, fica claro onde estão as prioridades imediatas da Moore Threads. O evento se concentra em aplicações de IA, computação científica, terminais inteligentes e uso em larga escala. Em outras palavras, a nova arquitetura será apresentada primeiro para o mercado profissional e de data centers. Isso soa familiar? Deveria. É exatamente a estratégia que a NVIDIA aperfeiçoou ao longo dos anos: lançar primeiro as GPUs Tesla/A100/H100 para o mercado corporativo, gerando receita e refinando a arquitetura, para só depois adaptá-la às placas GeForce RTX para consumidores.

A Moore Threads parece estar seguindo esse roteiro à risca. É uma jogada inteligente, financeiramente falando. O mercado profissional é menos sensível a problemas de compatibilidade em jogos e mais tolerante com um ecossistema de software em desenvolvimento, desde que a performance bruta em tarefas específicas como treinamento de modelos seja competitiva. Além disso, com as restrições de exportação de chips avançados para a China, há uma demanda interna gigantesca por soluções locais para IA. A empresa pode estar mirando nesse vácuo.

Comparativo visual entre logos da Moore Threads e NVIDIA

A corrida interna chinesa e o sonho do consumidor

Enquanto se prepara para o grande anúncio, a Moore Threads não está sozinha no páreo. A concorrência doméstica está se aquecendo. A Lisuan é outra fabricante chinesa que corre atrás para colocar suas GPUs no mercado, mesmo enfrentando atrasos em seu roadmap. Essa competição interna é saudável e pode, no longo prazo, beneficiar o consumidor chinês – e talvez, quem sabe um dia, o global.

Muitos entusiastas ao redor do mundo torcem pelo sucesso dessas empresas. Por quê? A resposta é simples: o mercado de placas de vídeo para PC está essencialmente dividido entre a NVIDIA e a AMD, com a Intel tentando ganhar espaço. A entrada de um terceiro (ou quarto) player relevante poderia introduzir uma concorrência de preços e inovação que há muito se faz desejada. A própria Moore Threads já demonstrou que é capaz de melhoras substanciais via software, com atualizações de driver que trouxeram ganhos de desempenho expressivos em alguns títulos. Isso mostra que a base de hardware talvez seja melhor do que os primeiros resultados indicavam.

O relato do VideoCardz sobre a discrepância entre a performance teórica e real da MTT S80 é um lembrete importante. Desenvolver uma GPU é um feito hercúleo de engenharia, mas construir um ecossistema robusto de drivers, ferramentas e suporte para desenvolvedores é uma guerra de atrito que leva anos. A NVIDIA tem uma vantagem de décadas nisso. A pergunta que fica é: a nova arquitetura que será revelada em dezembro virá acompanhada de um salto igualmente significativo no suporte de software? Ou será mais um caso de "hardware à frente do seu tempo", esperando pelo software alcançá-lo?

E o que isso significa para o gamer comum? Provavelmente, ainda teremos que esperar. As versões domésticas baseadas nessa nova arquitetura profissional podem demorar muitos meses – se não mais de um ano – para chegar ao mercado. Projetos como a suposta S3000E, que almejava competir com a futura RTX 5050, estão nesse horizonte distante. A jornada para quebrar o duopólio é longa, mas cada novo lançamento é um capítulo necessário.

Mas vamos além do anúncio em si. O que realmente importa são os detalhes técnicos que a Moore Threads deve revelar – ou talvez, o que ela vai omitir. Arquiteturas de GPU são complexas, e o diabo está nos detalhes. Será que veremos um salto na contagem de núcleos (CUDA cores, no jargão da NVIDIA)? E a memória? A S80 já vinha com 16GB de GDDR6, o que era bastante generoso para sua faixa. A nova arquitetura pode trazer suporte a GDDR6X ou até HBM para as versões profissionais? A eficiência energética é outro ponto crítico, especialmente para data centers. As GPUs chinesas têm sido criticadas por seu consumo de energia relativamente alto para o desempenho entregue. Uma nova arquitetura é a chance perfeita para corrigir isso desde a base.

E não podemos esquecer das APIs. O suporte ao DirectX 12 Ultimate, Vulkan 1.3 e OpenCL 3.0 será nativo? A compatibilidade com frameworks de IA como TensorFlow e PyTorch será plug-and-play, ou exigirá adaptações custosas? Essas são perguntas que os desenvolvedores profissionais farão antes de considerar uma mudança. Afinal, tempo é dinheiro, e ninguém quer reescrever código inteiro para uma plataforma nova.

O ecossistema é a verdadeira batalha

Falando em desenvolvedores, o "Developer" no nome da conferência não é por acaso. O sucesso de longo prazo da Moore Threads depende totalmente de sua capacidade de atrair e manter uma comunidade ativa de criadores de software. A NVIDIA tem o CUDA, uma fortaleza quase impenetrável no mercado de IA e computação científica. A AMD tem o ROCm, que vem ganhando terreno, mas ainda é visto como uma alternativa. O que a MUSA pode oferecer que seja único ou suficientemente melhor para justificar a migração?

Algumas possibilidades vêm à mente. A empresa poderia focar em uma integração mais profunda com ecossistemas de nuvem chineses, como o Alibaba Cloud ou o Tencent Cloud, oferecendo stacks de software otimizados e preços competitivos para empresas locais. Outra estratégia seria abraçar totalmente o código aberto, liberando drivers, SDKs e ferramentas sob licenças permissivas para construir boa vontade e acelerar a adoção pela comunidade. Já pensou? Uma GPU com drivers totalmente open-source seria o sonho de muitos entusiastas do Linux.

O histórico de atualizações de driver da empresa, embora mostre progresso, também revela o tamanho do desafio. Cada novo jogo AAA lançado é um novo obstáculo a ser superado. Enquanto a NVIDIA e a AMD têm equipes dedicadas que trabalham em contato direto com estúdios de desenvolvimento meses antes do lançamento, a Moore Threads frequentemente precisa correr atrás do prejuízo, analisando o jogo já lançado para criar otimizações. É uma desvantagem competitiva enorme. Para virar esse jogo, a empresa precisaria estabelecer parcerias estratégicas com desenvolvedores de jogos chineses – que estão em crescimento – para ter títulos otimizados de fábrica para a MUSA no dia do lançamento.

O contexto geopolítico: uma faca de dois gumes

Não dá para analisar a Moore Threads sem olhar para o tabuleiro geopolítico. As restrições de exportação dos EUA criaram um cenário paradoxal para a empresa. Por um lado, é uma oportunidade de ouro. Com a NVIDIA limitada em vender suas GPUs mais avançadas (como as séries H100 e H200) para a China, há um mercado interno faminto por alternativas locais para treinar modelos de IA de grande escala. Empresas chinesas de tecnologia, pesquisa e governo podem ser clientes cativos, pelo menos no curto prazo, dispostos a tolerar algumas arestas em troca de soberania tecnológica e garantia de fornecimento.

Por outro lado, essas mesmas restrições dificultam o progresso da Moore Threads. A empresa depende de fundições (como a SMIC) e de ferramentas de design (EDA) que também estão sob pressão das sanções. Acesso à tecnologia de litografia de ponta e a softwares de simulação avançados não é garantido. Isso pode limitar o quão "nova geração" essa nova arquitetura realmente pode ser. Ela pode ser um grande salto em relação à S80, mas ainda assim ficar várias gerações atrás do que a NVIDIA está desenvolvendo em um ambiente sem restrições. É uma corrida onde um dos corredores tem os pés parcialmente amarrados.

E tem o aspecto do "soft power" tecnológico. O sucesso de uma empresa como a Moore Threads vai além dos lucros. É uma questão de prestígio nacional e demonstração de capacidade de inovação autônoma. O governo chinês provavelmente oferece (ou oferecerá) subsídios, encomendas estatais e apoio regulatório. Mas esse apoio vem com expectativas – e talvez com pressão para mostrar resultados rápidos, o que nem sempre combina com o desenvolvimento meticuloso e paciente que a engenharia de semicondutores exige.

E o que acontece se e quando as restrições forem relaxadas? Se a NVIDIA puder voltar a vender livremente para a China, a Moore Threads perderá seu "guarda-chuva" de mercado protegido da noite para o dia. Suas GPUs terão que competir em pé de igualdade, não apenas em performance bruta, mas em todo o ecossistema que cerca uma placa de vídeo. Estará preparada para isso? A estratégia de focar primeiro no profissional pode ser justamente o treino necessário para essa batalha futura, criando uma base de clientes fiéis e um fluxo de caixa estável antes do confronto direto no varejo.

No fim das contas, o evento do dia 19 de dezembro é mais do que um simples lançamento de produto. É um teste de fogo para a ambição tecnológica chinesa em uma das áreas mais complexas e estratégicas da indústria. A plateia não será composta apenas por entusiastas de hardware, mas por analistas políticos, executivos de grandes corporações e, claro, pelos concorrentes em Palo Alto e Santa Clara. Todos querendo saber: a Moore Threads finalmente encontrou a fórmula para transformar potencial em performance real, ou estamos prestes a ver mais um capítulo de promessas adiadas? A resposta começará a ser desvendada no palco do MDC, mas seus ecos certamente serão sentidos muito além das fronteiras da China.

Com informações do: Adrenaline