A Ford e o Grupo Renault anunciaram uma aliança estratégica que marca o retorno da montadora norte-americana ao segmento de carros populares na Europa. O acordo, revelado nesta terça-feira (9), prevê o desenvolvimento de dois novos carros elétricos da Ford baseados na plataforma Ampere da Renault. O primeiro deles, aguardado como o sucessor espiritual do icônico Ford Fiesta, tem lançamento confirmado para o início de 2028. Esta movimentação é uma resposta direta à queda vertiginosa da Ford no mercado europeu, onde sua participação encolheu de 8,3% em 2005 para apenas 2,9% em 2025, após o fim da produção de modelos de volume como Ka, Fiesta e Focus.

A base técnica e o desafio da identidade
A base escolhida para os novos elétricos da Ford é a plataforma AmpR Small, a mesma utilizada pelo novo Renault 5 e pelo futuro Renault 4. Embora a Ford prometa um DNA autêntico, o hardware principal será compartilhado com os franceses. Estima-se que o motor elétrico, posicionado no eixo dianteiro, entregue potências entre 123 cv e 218 cv, dependendo da versão, com opções de bateria de 40 kWh ou 52 kWh.
O grande desafio da Ford será evitar o "efeito rebadge" – aquele sentimento de que é apenas um carro de outra marca com um emblema diferente. Em minha opinião, esse é o maior risco de parcerias como essa. Basta olhar para o Nissan Micra/March, que é esteticamente muito próximo do Renault 5.

A marca norte-americana, no entanto, garante que seus modelos terão propostas "altamente personalizadas", com design feito inteiramente por seu estúdio e uma dinâmica de condução distinta. Na prática, isso significa que, apesar de usar o chassi francês, a Ford deve aplicar sua própria calibração de suspensão e direção para tentar entregar a esportividade característica que consagrou o antigo Fiesta. Será que vai funcionar? A carroceria deve mudar pouco, para não perder o ganho em escala e aumentar a complexidade da linha de montagem, o que já limita um pouco as possibilidades.
Os modelos e a estratégia de preço
A ofensiva de produtos contempla dois modelos distintos:
Sucessor do Fiesta: Um hatch compacto focado em volume, preenchendo a lacuna deixada pelo fim do modelo a combustão em 2023.
Novo Crossover Compacto: Um modelo derivado da arquitetura do Renault 4, que poderia atuar como um substituto elétrico para o Puma ou complementar a linha abaixo do Explorer.

É um anúncio curioso, para dizer o mínimo. Os rumores mais recentes falavam sobre a Ford utilizar a plataforma da Volkswagen. A decisão é tomada em um momento crítico: as vendas dos elétricos atuais da Ford baseados na plataforma MEB da Volkswagen (Explorer e Capri) estão abaixo do esperado, forçando cortes de produção na Alemanha. Este cenário deve ter pesado bastante na escolha de mudar de parceiro.
Ao adotar a plataforma Ampere, considerada mais econômica que a MEB Entry da VW, a Ford busca um posicionamento agressivo em preço. A meta é posicionar o novo hatch em uma faixa próxima à do Renault 5, estimada em cerca de 22.000 libras. Uma mudança técnica importante prevista para 2028 é a substituição da química das baterias, migrando das células NMC para a tecnologia LFP (Fosfato de Ferro-Lítio), mais robusta e financeiramente acessível – um movimento claro para reduzir o custo final do carro.

Além dos carros de passeio, as marcas também assinaram uma carta de intenções para colaborar no desenvolvimento de novos veículos comerciais leves na Europa. A produção de todos os novos modelos será realizada no complexo ElectriCity da Renault, no norte da França, o que fala muito sobre quem está fornecendo a infraestrutura essencial nesta parceria.
Mas essa corrida por preços baixos não é apenas uma questão de competitividade entre montadoras tradicionais. É uma questão de sobrevivência. A pressão exercida pelos fabricantes chineses, como a BYD, que já vende o Dolphin por menos de 25.000 euros na Europa, está redefinindo o que os consumidores esperam em termos de custo-benefício. A Ford, que já teve um carro popular de sucesso com o Ka de primeira geração (que, não por acaso, também era um projeto conjunto com a Fiat), parece estar relembrando uma lição antiga: no segmento de entrada, o preço é rei.
E isso nos leva a um ponto crucial: a experiência do usuário. Um carro elétrico barato que seja entediante de dirigir ou que tenha uma interface digital confusa pode acabar sendo um tiro pela culatra. A promessa da Ford de uma "dinâmica de condução distinta" soa bem no papel, mas será que a plataforma AmpR Small, projetada para eficiência e custo, tem a flexibilidade necessária para receber uma calibração realmente esportiva? Em minha experiência, plataformas compartilhadas costumam ter limitações físicas intrínsecas que mesmo os melhores engenheiros não conseguem contornar completamente.
O cenário competitivo e o fantasma dos chineses
Enquanto a Ford e a Renault se unem, o mercado não para. A Volkswagen tem seu próprio plano agressivo com o ID.2all, prometido por menos de 25.000 euros. A Stellantis avança com uma enxurrada de modelos baseados na plataforma Smart Car. E no canto do ringue, os chineses não estão apenas competindo em preço. Eles estão inovando em ritmo frenético. A tecnologia de bateria LFP, que a Ford só planeja adotar em 2028, já é padrão em muitos modelos chineses hoje, oferecendo maior durabilidade e segurança a um custo menor.
É um jogo de xadrez multidimensional. A parceria Ford-Renault pode ser vista como uma tentativa de criar um "contrapeso europeu" à invasão asiática, unindo forças para alcançar a escala necessária para competir. Mas será suficiente? Alguns analistas são céticos. A eficiência operacional e a agilidade de decisão das montadoras chinesas, muitas vezes livres das complexidades sindicais e legais europeias, dão a elas uma vantagem que vai além do custo da mão de obra.
O que me intriga é o timing. Lançar um carro em 2028 significa que ele foi concebido hoje. O mercado de elétricos em 2028 será radicalmente diferente do de 2024. A autonomia terá aumentado, os tempos de recarga diminuído e a infraestrutura, em tese, melhorado. Um projeto que parece competitivo agora pode chegar ao mercado já defasado se não tiver margem para incorporar avanços tecnológicos de última hora. A plataforma AmpR Small foi concebida com essa modularidade em mente? A Renault e a Ford estão construindo um carro para o futuro ou para o presente?
O que isso significa para o consumidor?
Para o comprador europeu médio, essa aliança pode ser uma boa notícia. Mais opções no segmento de entrada significam mais concorrência e, potencialmente, preços mais baixos. A volta de um nome icônico como Fiesta, mesmo que em uma roupagem elétrica e com DNA parcialmente francês, pode atrair uma legião de fãs saudosistas e novos clientes em busca de uma marca com tradição.
No entanto, há riscos. A consolidação de plataformas pode levar a uma certa homogeneização dos carros. Se Ford, Renault, Nissan e possivelmente outros usarem a mesma base, onde estará a diversidade real de escolha? A personalização superficial – um para-choque diferente, uma calibração de software – será suficiente para justificar a lealdade à marca? Eu, particularmente, tenho minhas dúvidas. O consumidor final é mais esperto do que se imagina e percebe quando está comprando um "carro de plataforma" com um emblema diferente.
Outro ponto é a rede de assistência e a experiência de propriedade. A Ford terá de garantir que sua rede de concessionárias na Europa, que encolheu junto com suas vendas, esteja preparada para lidar com a eletrônica complexa e as baterias de um carro construído em uma fábrica da Renault. A integração de software, um dos maiores pontos de dor nos carros modernos, será crucial. O infotainment será o SYNC da Ford rodando sobre hardware francês? Como serão as atualizações over-the-air?
E não podemos esquecer do elefante na sala: a confiança do consumidor. Parcerias industriais complexas, às vezes, geram insegurança sobre a longevidade do suporte e a disponibilidade de peças no longo prazo. A Ford saiu do segmento de hatchs compactos uma vez. O que garante ao cliente que, se as vendas não forem as esperadas, ela não fará isso de novo, deixando os proprietários de um "Renault-Ford" híbrido em uma situação complicada? A percepção de estabilidade é um ativo intangível, mas poderosíssimo, especialmente para quem planeja ficar com o carro por vários anos.
O caminho está traçado, mas cheio de curvas. A aliança entre a Ford e a Renault é um reflexo claro dos tempos turbulentos que a indústria automotiva vive. É uma aposta arriscada, mas talvez necessária. Resta saber se a soma das partes será maior que o todo, ou se será apenas mais um capítulo na longa história de tentativas – nem sempre bem-sucedidas – de colaboração na indústria automotiva global. O sucesso não dependerá apenas de engenharia e preço, mas da capacidade de contar uma história convincente para um público cada vez mais exigente e informado.
Com informações do: Quatro Rodas











