Enquanto veículos autônomos já circulam em países como Alemanha e Estados Unidos, o Brasil parece ficar para trás em uma revolução tecnológica que promete redefinir a mobilidade. A realidade por aqui é bem diferente: nosso Código de Trânsito ainda proíbe expressamente que um motorista conduza sem usar as mãos, e não existe um marco legal que permita testes ou a operação segura dessa tecnologia. Mas será que isso está prestes a mudar? Um Projeto de Lei tramita no Congresso, tentando criar as regras do jogo para um futuro que, em outros lugares, já começou.

Projeto de carro autônomo nacional, chamado de IARA

Curiosamente, o Brasil não é um completo estranho nesse cenário. Já em 2014, pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) desenvolveram o IARA (Intelligent Autonomous Robotic Automobile), considerado o primeiro carro autônomo brasileiro. Em testes controlados, o veículo, baseado em um Ford Escape híbrido e na plataforma ByWire XGV, percorreu 74 km em vias urbanas. Onze anos depois, porém, o debate parece ter estagnado. O que explica essa lentidão diante de uma tecnologia que avança a passos largos globalmente?

O Labirinto Legal e a Busca por Segurança

Para o advogado Rodrigo Sardenberg, especialista no tema, o principal entrave é a incipiência do ambiente regulatório. "A ausência de parâmetros técnicos e legais impõe uma variedade de riscos", ele destaca. E os riscos são reais – nos EUA, acidentes envolvendo sistemas da Tesla já geraram intensos debates sobre responsabilidade e segurança.

Na visão de Sardenberg, são muitas perguntas sem resposta que travam o progresso. Que nível de segurança é necessário para testes e circulação? Como avaliar falhas? Quem será responsabilizado por danos causados por decisões do sistema? São questões complexas que o direito brasileiro ainda não sabe como abordar. E, na prática, essa insegurança jurídica afasta investimentos e inibe a inovação local. Afinal, qual empresa arriscaria desenvolver uma tecnologia cara e complexa sem saber as regras que a governarão?

Sistema da Tesla consegue dirigir sozinho na cidade, mas de modo limitado e com supervisão obrigatória do motorista

O PL 1317/2023 e os Primeiros Passos de uma Longa Jornada

Há, sim, movimento no Congresso. O Projeto de Lei 1317/2023, do deputado Alberto Fraga (PL-DF), foi aprovado pela Comissão de Viação e Transportes e agora aguarda análise pela Comissão de Constituição e Justiça. Mas não espere uma revolução rápida. O próprio especialista consultado é cético: "muita coisa pode acontecer" e nenhum texto "deverá ser aprovado em breve".

O projeto em questão tenta esboçar algumas respostas. Ele prevê a regulação pelo Contran, a obrigatoriedade de um "motorista de segurança" presente no veículo (com uma autorização especial na carteira) e estabelece critérios de responsabilidade em caso de acidentes. A ideia é clara: a culpa pode ser solidária ou exclusiva do fabricante ou do proprietário, dependendo da situação. Se a falha for de programação ou fabricação, por exemplo, o proprietário teria direito ao dobro do valor pago em indenizações. Parece lógico no papel, mas na vida real as coisas são mais nebulosas.

O Dilema Moral e os Desafios Práticos do Brasil

E é aí que chegamos ao cerne da questão, que vai além da burocracia. Como programar a ética em uma máquina? Em uma situação inevitável de acidente, o sistema deve priorizar a vida do pedestre ou a do ocupante do veículo? "Existem várias questões morais envolvidas", admite Sardenberg. O especialista também vê uma contradição intrínseca na exigência de um motorista de segurança. A promessa da autonomia é justamente libertar o humano da tarefa de dirigir, mas a desconfiança nos força a mantê-lo ali, "distraído", na expectativa de que ele assuma o controle em milésimos de segundo para evitar uma tragédia. Faz sentido?

Além da filosofia, temos problemas bem terrenos. A malha viária brasileira, com sua sinalização irregular, buracos e condições imprevisíveis, é um desafio monumental para sensores e algoritmos treinados em ambientes mais organizados. Um sistema pode ficar confuso com uma placa de trânsito pichada, um quebra-molas não sinalizado ou uma faixa de pedestres desgastada. E quanto aos "Ubers" sem motorista, que já operam em outras partes do mundo? Eles dependeriam não só da aprovação da lei, mas também de cumprirem a exigência (pelo menos na versão atual do PL) de ter um humano a bordo para emergências.

Robotáxi da Avride, utilizado pela Uber

O caminho para os carros autônomos no Brasil, portanto, é longo e cheio de curvas. Envolve não apenas votar uma lei, mas criar uma cultura de teste, estabelecer padrões técnicos robustos e enfrentar dilemas éticos para os quais talvez nunca tenhamos respostas perfeitas. Enquanto o Congresso debate, o mundo segue dirigindo sozinho. A pergunta que fica é: quando, finalmente, o Brasil entrará nessa estrada?

Mas talvez a questão mais imediata não seja quando teremos carros totalmente autônomos, e sim como vamos lidar com os níveis intermediários de automação que já estão chegando – ou que já estão aqui, disfarçados. Você já parou para pensar que muitos carros novos vendidos hoje têm sistemas de assistência à condução que são, na prática, os primeiros degraus dessa escada? Frenagem automática de emergência, assistente de permanência em faixa, controle de cruzeiro adaptativo... São tecnologias que, em conjunto, já podem manter o carro na pista e na velocidade certa por longos trechos em rodovias. Tecnicamente, o motorista ainda precisa supervisionar. Mas, convenhamos, a tentação de confiar demais na máquina é enorme. E o nosso Código de Trânsito, que exige as mãos no volante, simplesmente ignora essa nova realidade comportamental.

É um paradoxo interessante: a lei proíbe o que a tecnologia já permite de forma limitada, criando uma zona cinzenta onde a responsabilidade fica suspensa. Se um acidente acontecer com o piloto automático ativo, mas com as mãos do motorista longe do volante, quem é o culpado? O fabricante, por ter criado um sistema que "induz ao erro"? O condutor, por descumprir a lei? Ou o legislador, por não ter criado regras claras para uma tecnologia que já está nas ruas? Sardenberg aponta que essa falta de clareza é, em si, um risco. "A insegurança jurídica é um desincentivo à inovação, mas também um terreno fértil para litígios futuros", ele comenta. Enquanto isso, as montadoras seguem vendendo carros cada vez mais "inteligentes", e os motoristas seguem aprendendo a usar – e às vezes a abusar – desses recursos por conta própria, num grande experimento social não supervisionado.

Além das Capitais: A Autonomia no Campo e na Logística

Quando falamos de carros autônomos, a imagem que vem à mente é a de um sedan elegante navegando pelo tráfego caótico de São Paulo. Mas e se o primeiro uso em larga escala no Brasil acontecer longe dos centros urbanos? O agronegócio e o setor logístico são candidatos naturais – e talvez mais viáveis – para a adoção precoce. Já existem tratores e colheitadeiras autônomas operando em fazendas mundo afora, seguindo rotas pré-programadas em campos abertos, longe do risco imprevisível dos pedestres e dos outros veículos.

No Brasil, o cenário é promissor. Imagine caminhões de carga trafegando em fila indiana (o "platooning") pelas longas e retas rodovias de exportação, com apenas o primeiro veículo tendo um motorista humano. Os demais seguiriam automaticamente, economizando combustível e reduzindo a escassez de caminhoneiros. Os desafios técnicos existem, é claro – uma capivara cruzando a estrada à noite é um teste diferente para um sensor do que um pedestre numa calçada. Mas os desafios legais e de segurança podem ser mais simples de contornar em ambientes controlados, como portos, terminais de carga ou propriedades rurais privadas. Essa poderia ser a porta de entrada: a autonomia chegando primeiro pelo campo e pela logística, criando um histórico de segurança e familiarizando a sociedade com a tecnologia, antes do grande salto para o transporte de passageiros nas cidades.

A Infraestrutura como Pré-requisito (ou não?)

Há um debate técnico fascinante sobre o que precisa vir primeiro: a tecnologia perfeita ou a infraestrutura adaptada? A visão tradicional, defendida por muitos especialistas, é a de que o Brasil precisa melhorar suas estradas, padronizar a sinalização e integrar sistemas de comunicação (a tal da tecnologia V2X – "vehicle to everything") para que os carros autônomos funcionem de forma confiável. Sem faixas bem pintadas, placas legíveis e conexão de dados, os veículos ficariam "cegos" e inseguros. Faz todo o sentido, não?

Porém, uma corrente mais recente, impulsionada pelos avanços em inteligência artificial e visão computacional, argumenta o contrário. Empresas como a Tesla apostam em uma abordagem chamada de "autonomia baseada em visão". Em vez de depender de mapas hiperdetalhados e infraestrutura inteligente, os carros aprenderiam a dirigir em qualquer ambiente, interpretando o mundo ao redor através de câmeras, da mesma forma que um humano faz. Um buraco na rua? A câmera vê e o sistema desvia. Uma placa de pare coberta por um galho? O contexto da via e o comportamento dos outros carros indicariam a necessidade de parar. Se essa visão prevalecer, o atraso na nossa infraestrutura deixaria de ser uma barreira intransponível. O carro autônomo teria que ser justamente aquele capaz de lidar com o caos e a imperfeição – uma característica, diga-se de passagem, que descreve bem o trânsito brasileiro. Será que o "jeitinho" da direção autônoma poderia nascer aqui?

Na prática, a resposta provavelmente estará no meio-termo. Mesmo os sistemas mais avançados se beneficiam enormemente de uma infraestrutura minimamente organizada. E aqui surge outra questão de fundo: quem paga a conta? A modernização de milhões de quilômetros de vias para atender a uma frota ainda incipiente de veículos autônomos é um investimento público colossal. Sem um claro retorno social ou econômico no curto prazo, é difícil imaginar os governos priorizando essa agenda. O que nos leva de volta ao ponto de partida: talvez a regulação precise criar incentivos ou obrigar que os desenvolvedores da tecnologia assumam parte desse ônus, como condição para operarem. É mais uma camada de complexidade em um debate que mal começou.

E não podemos esquecer do fator humano, que vai muito além do "motorista de segurança". Como a sociedade vai absorver essa mudança? Haverá resistência de categorias profissionais, como taxistas e motoristas de aplicativo? Como será a requalificação dessa mão de obra? O transporte público autônomo poderia, em tese, aumentar a oferta e reduzir custos, mas depende de investimentos massivos que, hoje, sequer são discutidos. Enquanto o PL 1317/2023 mexe nas engrenagens legais, falta um debate público mais amplo sobre o tipo de mobilidade que queremos para as próximas décadas. A tecnologia é apenas uma ferramenta. O destino final, esse ainda está por ser escolhido.

Com informações do: Quatro Rodas